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Inovação em Saúde: Importância da investigação clínica e de translação
Esta área de investigação que junta vários profissionais como médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, e demais investigadores de variadíssimas áreas (por exemplo, Biologia, Química, Física, Economia, Engenharia e Robótica, Matemática e Estatística, Informática e Ciência de Dados, Sociologia, Direito...) orienta as suas linhas e prioridades de investigação de acordo com as necessidades diariamente identificadas no contacto com os doentes. Os investigadores trabalham em conjunto e com os doentes, de modo a obterem novo conhecimento sobre doenças, tratamentos, processos, métodos e a desenvolverem-nos e adequarem-nos para a melhoria das intervenções em saúde nas suas várias perspetivas: prevenção, diagnóstico, prognóstico ou tratamento. Usa-se o “mundo real” para desenvolver o conhecimento científico e aplicam-se os conhecimentos científicos no “mundo real”. Ao mesmo tempo, a excelência científica e o potencial de inovação, bem como o desenvolvimento económico e social são exponenciados.
Medicina personalizada: mais eficiência, menores custos
A medicina personalizada é uma prática médica que se baseia na caracterização de genótipos e fenótipos para adequar estratégias de diagnóstico e terapêuticas a cada pessoa no tempo certo, para determinar a predisposição de cada indivíduo para uma doença, e/ou para a prevenção precisa e atempada de doenças. Utilizam-se perfis genéticos, que podem incluir um ou mais genes, imagiologia médica, informação clínica, dados sociodemográficos, ambientais e de estilos de vida numa investigação orientada para os pacientes que estuda os mecanismos envolvidos nas doenças, intervenções terapêuticas, ensaios clínicos, e desenvolve novas tecnologias. Em suma, a medicina personalizada permite desenvolver estratégias de prevenção e tratamento para indivíduos ou grupos de pacientes e, usando diversos e eficientes meios de diagnóstico e prognóstico, torna possível reduzir custos e efeitos secundários associados ao tratamento. Deste modo, a medicina personalizada responde aos desafios da baixa eficiência terapêutica para tratar números alargados de pacientes, e do aumento contínuo de custos devido à maior prevalência de doenças crónicas e de uma população envelhecida.
A medicina personalizada tem vindo a ser fortemente implementada nas áreas da oncologia e das doenças raras. A sua importância está bem patente, também, em estudos clínicos como por exemplo os desenvolvidos para entender a Doença de Crohn. Com base em estudos clínicos, acredita-se que esta doença resulta da interação entre fatores genéticos de cada indivíduo, microbiota intestinal (o conjunto de microrganismos que vive no intestino) e ambiente (fatores socioeconómicos e estilos de vida). Identificaram-se marcadores genéticos humanos, marcadores de microbiota intestinal, dados sociodemográficos e de estilo de vida que diferenciam os indivíduos de acordo com o seu risco para virem a ser doentes de Crohn, ou que permitem agrupar os doentes de acordo com o melhor tratamento que lhes poderá ser administrado. Entendendo como os diferentes fatores genéticos, sócio-económicos e de microbiota intestinal interagem para causar a Doença de Crohn e sendo possível a estratificação de doentes, saberemos melhor como diagnosticar os doentes e saberemos melhor como tratá-los.
Sequenciação de DNA e RNA em tempo real
Outro bom exemplo da simbiose entre a investigação e a clínica foi o uso de uma tecnologia de sequenciação de DNA e RNA em tempo real relativamente recente desenvolvida pela Oxford Nanopore Technologies, ONT (uma spin-off da Universidade de Oxford) e em constante desenvolvimento. Não é minha intenção fazer publicidade, mas usei-a para sequenciação de genomas de bactérias e fungos e é, de facto, uma tecnologia fantástica! Num estudo recente de um grupo do Hospital Universitário de Oslo, Noruega, os investigadores e profissionais de saúde utilizaram a tecnologia ONT e desenvolveram uma pipeline de análise dos dados baseada em machine learning para a classificação precisa e rápida de tumores cerebrais (menos de duas horas) em crianças e adultos durante neurocirurgias. Este método abre caminho para uma intervenção personalizada mais precisa e segura tanto de diagnóstico, como de avaliação de risco, tratamento e prognóstico.[1]
Durante a pandemia da COVID-19, foi também a interação entre a investigação e a clínica que permitiu que em tão pouco tempo se trabalhasse para o rápido diagnóstico, prevenção da propagação do vírus e da doença e seu tratamento. Por esse mundo fora, centros de investigação, universidades e farmacêuticas trabalharam em conjunto com os profissionais de saúde para entender como o vírus se propagava e por quanto tempo se mantinha em superfícies, desenvolver testes rápidos de diagnóstico, aplicar metodologias e tecnologias para melhor tratamento, fazer estudos epidemiológicos e de comportamento para informar políticas de saúde, etc. Em Portugal, organizaram-se grupos de trabalho nas universidades e centros de investigação para ajudar o Sistema Nacional de Saúde na detecção da presença de SARS-CoV-2 em amostras de pessoas suspeitas de terem contraído o vírus. Eu, muito orgulhosamente, fiz parte desse grupo de trabalho do Instituto de Biomedicina, Departamento de Ciências Médicas da Universidade de Aveiro. Pusemos a nossa experiência e capacidade ao serviço da clínica de uma forma muito objetiva, prática e, essencialmente, necessária.
Os estudos epidemiológicos e comportamentais são também importantes na investigação clínica e translacional. Por um lado, a análise epidemiológica de dados relacionados com saúde é fundamental para o apoio à decisão a todos os níveis dos serviços de saúde e a Saúde Digital e as Tecnologias Médicas estão, e bem, na ordem do dia. Por outro lado, potencia a utilização daqueles dados, colhidos durante a rotina hospitalar, para obter novo conhecimento sobre doenças, tratamentos, comportamentos, etc.
A avaliação em tecnologias e intervenções em saúde e o estudo dos resultados obtidos em saúde é outro ramo importante da investigação clínica e translacional, que têm como objectivo servir de suporte à decisão a diferentes níveis como o de alocação de recursos humanos, técnicos e materiais disponíveis para responder aos desafios no âmbito da saúde. Esta avaliação contínua e sistemática proporciona a otimização contínua destes processos.
A experiência do Reino Unido
A integração da investigação clínica e translacional nos cuidados de saúde no Reino Unido é muito bem-sucedida. No seu relatório de 2020, Transforming health through innovation: Integrating the NHS and academia (https://acmedsci.ac.uk/file-download/23932583), a Academia de Ciências Médicas do Reino Unido explorou como a interface entre a academia/investigação e o NHS (serviço nacional de saúde britânico) potencia a saúde e a riqueza do país. Num país onde a investigação clínica é apoiada por centros de investigação e universidades de excelência, investigação biomédica e translacional capaz, indústria farmacêutica e tecnológica pujante, e financiamento diversificado, a sua vantagem competitiva é óbvia. Por isto, a investigação clínica contribuiu para avanços enormes nos cuidados de saúde no Reino Unido.
Os pacientes de centros clínicos envolvidos em projectos de investigação têm melhores resultados e melhores cuidados, e estes benefícios estendem-se aos doentes que não participam diretamente nestes projectos porque vão usufruir dos seus resultados. Consequentemente, os doentes demonstram vontade em ser envolvidos em estudos clínicos e o público em geral defende que o NHS deve ter um papel importante no apoio à investigação para novos tratamentos. No entanto, verifica-se que existe um declínio na capacidade dos trabalhadores do NHS em fazer ou envolverem-se em investigação e, por isso, a Academia de Ciências Médicas do Reino Unido fixou seis ações essenciais para reforçar a interface entre o NHS e o sector académico e de investigação clínica. Estas, no geral, passam por (1) valorizar a investigação clínica e translacional, (2) garantir que os profissionais de saúde têm tempo dedicado à investigação, (3) integrar profissionais de saúde nas equipas de investigação das instituições, (4) garantir a criação de competências em investigação durante a formação académica dos profissionais de saúde, (5) flexibilizar o acesso a pós-graduações, que são os cursos que permitem o desenvolvimento de competências em investigação e criar verdadeiras carreiras clínicas de investigação, e (6) flexibilizar a investigação pela criação de gabinetes de investigação e desenvolvimento conjuntos entre NHS e as instituições de ensino superior.
Em Portugal, a Agenda de Investigação e Inovação sobre Saúde, Investigação Clínica e de Translação pretende identificar áreas prioritárias na investigação e inovação em saúde, em Portugal, até 2030. Define apostas estratégicas para resposta ao desígnio enunciado na Resolução do Conselho de Ministros nº. 32/2016, em particular no anexo «Compromisso com o Conhecimento e a Ciência: o Compromisso com o Futuro»[2]. Esta Agenda envolve um conjunto de atores nacionais de diferentes áreas, academia, centros de investigação, empresas e entidades públicas, com a coordenação global da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Os peritos identificaram cinco subtemas dentro das três áreas articuladas da Saúde, Investigação Clínica e de Translação que deverão servir como orientação na definição e determinação de futuros programas e instrumentos científicos, incluindo de financiamento, de modo a irem ao encontro da resolução de problemas da sociedade e economia portuguesas, dando relevância a interligações e articulações entre as diferentes entidades. Estes subtemas são (1) Promoção do Envelhecimento Ativo e Saudável, (2) Medicina Personalizada e Biomarcadores, (3) Farmacologia, Medicamento e Terapias Avançadas, (4) Saúde Digital e Tecnologias Médicas, (5) Avaliação das Tecnologias e Intervenções em Saúde e Rápido Acesso à Inovação. Foram também identificados seis pilares nos quais assentam os desafios para o desenvolvimento da Saúde, Investigação Clínica e de Translação em Portugal até 2030: (i) política e estratégia; (ii) infraestrutura e recursos; (iii) recursos humanos; (iv) internacionalização; (v) literacia e participação ativa dos cidadãos; e (vi) inovação.
Desde há duas décadas a investigação em saúde em Portugal está em rápido desenvolvimento, principalmente pela mão de investigadores nas universidades e centros de investigação, mas também em empresas, no entanto, há ainda um longo caminho a percorrer. De facto, a investigação e inovação, na área da Saúde, Investigação Clínica e de Translação em Portugal depende essencialmente de financiamento a nível de unidades e infraestruturas de investigação, projetos de investigação científica e desenvolvimento tecnológico, formação de recursos humanos a nível avançado e emprego científico, maioritariamente ligados a universidades e centros de investigação. De acordo com a mais recente publicação da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, a área da Saúde foi a segunda com maior despesa em atividades de Investigação e Desenvolvimento entre 2014 e 2020 de entre as 15 áreas prioritárias definidas pela Estratégia Nacional de Investigação e Inovação para uma Especialização Inteligente. Em 2020, a execução da despesa foi maioritariamente feita pelo setor do ensino superior (48%), seguido do setor empresarial (33%), do Estado (11%) e de instituições privadas sem fins lucrativos (9%); uma tendência verificada desde 2014.
I&D em Saúde: Portugal com pouco investimento público, ainda menos privado
Como referi acima e de acordo com a Agenda, a investigação portuguesa nesta área teve uma evolução importante nos últimos anos devido ao aumento no investimento em infraestruturas, equipamentos e pessoal, devido a uma melhoria na capacitação humana, devido a uma maior dotação/captação de fundos para projectos, e devido a uma maior disposição para colaboração e internacionalização. Ao longo dos últimos 25 anos os níveis de produção científica nacional aumentaram vertiginosamente e as publicações na área da Saúde, incluindo publicações das Ciências da Vida e Engenharia Biomédica, representam à volta de 38% do total da produção científica nacional e, qualitativamente, o impacto desta produção científica em muitas áreas da Saúde é elevado. Também, as unidades de I&D têm aumentado em quantidade e qualidade. No entanto, os níveis de investimento são manifestamente insuficientes tanto no setor público como no setor privado e há poucas empresas a investir significativamente em I&D e, portanto, há menos I&D e Inovação com origem na indústria. Adicionalmente, o número de doutorados a trabalhar no setor privado é muito reduzido, assim como é reduzida a colaboração e interação entre a academia, prestadores de cuidados de saúde e indústria. Este facto impede inevitavelmente a transferência de conhecimento entre setores, condição essencial para o progresso dos cuidados de saúde, do conhecimento científico e para a criação de valor económico, que culminam no bem-estar da população.
A aproximação entre os agentes de investigação e inovação, a ação de organizações como o Health Cluster Portugal, a criação de Centros Académicos Clínicos e de Centros de Investigação Clínica, a sustentabilidade e a promoção das infraestruturas de investigação existentes, nomeadamente as que integram o roteiro Nacional de Infraestruturas de Investigação e a integração em redes de infraestruturas europeias para a investigação clínica e de translação, de que são exemplo a EATRIS e a ECRIN têm, no entanto, contribuído para a melhoria do desempenho do setor e são fundamentais para o seu progresso. A Agência De Investigação Clínica e Inovação Biomédica[3] foi criada por Resolução do Conselho de Ministros no. 20/2016 e tem como missão “promover, coordenar e apoiar as atividades nas áreas da investigação clínica e de translação (IC&T) e inovação biomédica, contribuindo para a otimização do potencial clínico, científico e tecnológico de Portugal”. As suas atividades passam por mobilizar fundos nacionais e comunitários e promoção da IC&T e inovação biomédica; agilizar actividades de I&D e colaboração entre unidades de cuidados de saúde e outras instituições de saúde, instituições científicas e académicas, e outras organizações que actuam neste âmbito, no sentido de potenciar a investigação clínica e translacional para a criação de valor acrescentado para a sociedade, para os doentes, para o sistema de saúde e para a formação superior na área da saúde com o intuito de uma melhoria contínua dos serviços de saúde e à excelência da prestação de cuidados médicos; promover a cultura científica e a criação de valor económico na área da saúde e garantir a sua sustentabilidade.
Assim, para acompanhar a excelente investigação básica e aplicada que se faz em Portugal na área da saúde, estão dados os primeiros passos para que a investigação clínica e de translação seja estruturada, apoiada e desenvolvida. São prioridades a promoção da saúde, a prevenção da doença, e a reorientação de políticas públicas com base em evidência científica; investir numa medicina precisa e centrada no doente que depende de e potencia o desenvolvimento de terapêuticas; a recolha, o tratamento e a partilha de dados para o avanço na saúde digital, ciência de dados e tecnologias médicas que permitem a medicina personalizada.
Para concretizarmos estas prioridades é imprescindível ter um plano estratégico para o sector da saúde que promova a colaboração entre a academia, profissionais de saúde e a indústria; assegurar um financiamento adequado em todas as fases da investigação; criar e garantir a sustentabilidade de infraestruturas, a capacitação dos recursos humanos, e a criação de emprego científico; desenvolver a literacia em saúde e a participação activa dos cidadãos; promover e fomentar a inovação.
Só assim podemos desenvolver competências em investigação e capacitar o Serviço Nacional de Saúde, pela saúde e riqueza do país.
Notas:
1 - vídeo de uma apresentação da primeira autora do estudo: https://nanoporetech.com/resource-centre/video/lc21/intraoperative-dna-m... acesso ao artigo científico usando o DOI: 10.1093/noajnl/vdab149
3 - https://aicib.pt
Esquerda Saúde 2
Revista Esquerda Saúde nº2
31 de MayQuem deve financiar a ciência?
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