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Pôr a saúde a render e depois queixamo-nos

Embora não pague nem queira pagar salários que atraiam médicos de família, a ministra permitiu deste modo a ideia de que a confiança entre o médico e a utente pode ser substituída por prémios avulsos aos profissionais pelas decisões que cabem às mulheres.

A explosão da ministra da Saúde no Parlamento tem várias interpretações possíveis, sendo evidente que, a faltar-lhe a maioria absoluta, teria cuidado das suas palavras e resolveria o assunto de uma penada, em vez de o arrastar na confusão. Tendo esse poder, preferiu exibi-lo, mesmo que seja claro que a medida em causa, a bonificação de médicos nos centros de saúde se não houver abortos entre as suas utentes, será anulada num ápice. A bravata da ministra só tem como única justificação o seu poder absoluto, que lhe permite o desinteresse pelas razões em causa: a extravagante proposta é errada e decorre de uma visão retrógrada da relação entre médico e utente, que transfere para o médico a decisão (e a bonificação ou, na falta dela, a penalização em relação aos seus colegas) que compete em exclusivo à mulher. O que a ministra sublinhou foi que, como ela é que manda, o Parlamento e a opinião pública não se devem atrever a fazer perguntas. O Governo mudou mesmo.

Em todo o caso, a ministra, ao prolongar o mistério, deu ao país um exemplo de como não funciona a noção do incentivo económico para gerir os atos de saúde, alegando-se ainda, para tornar a coisa mais anedótica, que o montante é pequeno. Embora não pague nem queira pagar salários que atraiam médicos de família, a ministra permitiu deste modo a ideia de que a confiança entre o médico e a utente pode ser substituída por prémios avulsos aos profissionais pelas decisões que cabem às mulheres. Alguém no ministério imagina que assim encaminhará as escolhas em saúde, ou que esse dinheiro manda nos médicos e nas pessoas utentes.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 13 de maio de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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