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O crédito bonificado não é uma política de habitação (nem de esquerda)
Vivemos uma crise habitacional profunda que se intensifica aceleradamente, quer pela especulação, quer pela pandemia, quer pela inflação. Na procura de respostas a esta crise, temos de compreender como chegámos até ela. Temos também de aprender com os erros do passado: para a falta de políticas de habitação em Portugal é gritante a influência do crédito bonificado. É por isto que me parece obtusa - se não escandalosa - esta ideia do Livre, PAN e Juventude Socialista de desenterrar o crédito bonificado - ou garantias mútuas - para apoio à aquisição de casa.
O impacto desta opção, que fomenta o consumo privado - de alguns - como resposta aos problemas habitacionais, foi a construção de uma sociedade de proprietários pouco conscientes da função social do edificado no espaço público, no ordenamento do território, na conformação dos espaços que vivemos... Foi ainda esta opção, que vigorou durante 26 anos, que levou a que tenhamos muito edificado altamente danificado, o que contribui para a sua alta ineficiência energética: uma grande parte das pessoas que se endividaram para construir ou adquirir a sua habitação não tiveram rendimentos para a ir mantendo e melhorando. Em alguns casos, a arrogância de deter uma propriedade ociosa vedada a funções sociais parece ter sido autorizada por este tipo de medidas.
É, por isto, essencial que se coloque esta questão para lá do já pernicioso efeito do endividamento das famílias. Portugal desenvolveu, desde fevereiro de 1976, um estado carente em habitação pública e excedente em propriedade privada construída com apoio público, o qual foi canalizado para a construção e para a banca: somos o país que tem mais habitação por mil habitantes da OCDE e temos, ao mesmo tempo, 12% desses fogos devolutos.
É preciso ter em conta que o estado da habitação e do abandono do edificado é também resultado de uma opção que pretendia sobretudo alavancar economicamente o país no imobiliário/construção e na banca ao promover o que académicos, nomeadamente Colin Crouch, denominam de keynesianismo privatizado: com a privatização dos serviços públicos garantidos pelo Estado Social, veio associada uma facilitação do crédito para que não se entendesse que as pessoas os estavam a perder (grosso modo). Ao apostar nestas políticas de substituição do estado social - e do investimento necessário - pelo financiamento através da banca, Portugal desistiu de construir um parque de habitação público que permitisse responder ao longo do tempo pela função social das cidades, do seu ordenamento e da resposta às necessidades de uma população pobre que nem sempre tem, nem deveria precisar de ter, acesso ao crédito para responder a uma necessidade básica. Esta foi uma das razões pelas quais temos uma das populações mais endividadas, o que é fator de grande fragilização em tempos de crise, como a que ocorreu em 2008. As últimas notícias dão nota de que podemos estar perto de subidas exponenciais das taxas de juros.
Não é pois despiciendo - e deve ser conhecido - o impacto do crédito bonificado na falta de política de habitação em Portugal. Estamos a falar de cerca de 7 mil milhões de euros entre 1987 e 2011 (aos quais se somam impactos orçamentais ainda aos dias de hoje), que poderiam ter permitido a construção de uma resposta pública minimamente consistente e alargada. O crédito bonificado absorveu mais de 70% do orçamento das políticas habitacionais nos anos referidos e garantiu o acesso à propriedade com apoio público, mas como se vê, não à habitação com interesse público. Ao mesmo tempo, o crédito bonificado absorveu as verbas necessárias à construção do parque habitacional público. O ímpeto pós-25 de abril que levou à construção de milhares de habitações através de programas com o envolvimento da população e técnicos como ocorreu no Serviço de Apoio Ambulatório Local - SAAL foi interrompido e substituído pela política de financiamento do endividamento privado. Não é que não houvesse vontade popular - ou dinheiro público. Mas vingou a estratégia mais favorável à banca.
O crédito bonificado parece uma resposta fácil à falta de acesso à habitação por parte de jovens. Num estudo de 2019 “Habitação Própria em Portugal numa perspetiva intergeracional”, os autores identificam um decréscimo acentuado de famílias proprietárias nas gerações até aos 29 anos entre 2001 e 2011. Em números absolutos, se havia em 2001 49.128 famílias com idade até aos 25 anos e 149.432 até aos 30 anos que eram proprietárias, em 2011 estamos a falar em 19 mil no primeiro escalão e 85.000 no segundo, uma redução de aproximadamente 100 mil (metade) em 10 anos. Mas queremos mesmo repetir a solução de uma “sociedade de proprietários privados endividados” como resposta habitacional?
Se analisarmos os dados sobre a cidade do Porto, por exemplo, ficamos a saber que existem 133.361 alojamentos. Neste universo, temos 50.163 proprietários, 45.106 arrendatários, 6.837 casos que encaixam em “outras situações” e temos cerca de 31.255 de casos que ficam por identificar - isto se subtraírmos ao número de alojamentos o número de regimes de ocupação identificados. Poderão estes ser alojamentos vazios? No Porto, o principal regime de ocupação já não é o da propriedade, ao contrário do que ocorre em grande parte do país. E há 31.255 casos que poderiam, sem dúvida, responder pelas necessidades habitacionais identificadas na cidade (neste número estão as casas vazias e o alojamento local), estancando a crise em curso. Como? Posse administrativa e reabilitação pública através do Plano de Recuperação e Resiliencia e do Quadro Comunitário.
Favorecer, através de política orçamental e - erradamente presumida - habitacional a resposta através do acesso à propriedade é insistir no erro que nos trouxe aos dias de hoje e que tão bem foi construído nesse palácio de cartas dos neoliberais. Ana Cordeiro Santos num artigo de dezembro de 2021 no Le Monde Diplomatique explica porque é que esta não é uma política habitacional, mas também porque não é de esquerda “A compra de casa própria com crédito bonificado e/ou benefícios fiscais produziu resultados iníquos porque favoreceu o crescimento da propriedade privada entre os segmentos mais abastados, já que os escalões que acederam ao crédito se situam nos escalões de rendimento superiores.” Ver partidos que se dizem de esquerda a embarcar em falácias neoliberais como esta, expõe o quanto a habitação não tem feito parte do pensamento estratégico da esquerda, mas também o quanto esses partidos são incapazes de incluir no seu projeto uma verdadeira resposta ao problema habitacional.
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