You are here
Hecatombe nos salários: mais pobreza, mais concentração da riqueza

A inflação penaliza as famílias mais pobres
Importa destacar os efeitos distributivos regressivos associados ao facto de o aumento dos preços se fazer sentir com especial intensidade nalgumas categorias de bens, especialmente os produtos alimentares e energéticos. Essa concentração penaliza desproporcionalmente as famílias de menores rendimentos, que não só consomem uma maior proporção do seu rendimento (em geral, por não terem rendimentos que lhes permitam realizar poupanças) como destinam uma parcela significativamente maior da sua despesa de consumo à aquisição destes produtos. O princípio segundo o qual a percentagem do rendimento dedicado à aquisição de bens alimentares se reduz à medida que o rendimento aumenta é tão universal que é conhecido como a Lei de Engel. Ora, segundo o INE, a inflação em Portugal tem-se concentrado desproporcionalmente nos Bens alimentares e bebidas não alcoólicas e nos Transportes, classes de bens que em março registavam aumentos homólogos de preços respetivamente de 7,2% e 11,0% - significativamente acima do aumento médio homólogo do IPC, que em março foi de 5,3%. Isto significa que a inflação realmente sentida pelas famílias de menores rendimentos é bastante superior ao que é sugerido pelo valor médio da inflação, implicando um efeito distributivo regressivo adicional.
Mesmo a atualização do Salário Mínimo Nacional em 6% não compensa o aumento dos preços de bens essenciais:
Impactos da inflação na distribuição da riqueza
Se todos os preços e rendimentos da economia variassem da mesma forma, os impactos da inflação seriam muito mitigados. Porém, historicamente, preços e rendimentos (salários, lucros, rendas e juros) sofrem variações muito distintas, dependendo dos setores que originam a inflação, mas também da capacidade dos diferentes agentes para ajustarem os seus próprios preços e rendimentos à inflação. Assim os preços variam de forma absoluta mas, sobretudo, de forma relativa, em função do poder negocial e de mercado dos diferentes agentes económicos.
Num contexto em que todos os preços e remunerações são objeto de atualização e renegociação, o processo gera sempre ganhadores e perdedores relativos. Quem ganha e quem perde depende sobretudo das instituições (contratos, mecanismos de renegociação, etc) e da distribuição do poder nos vários mercados e relações sociais (trabalho, crédito, diferentes mercados de bens e serviços, etc).
As medidas do Governo
No dia 11 de abril de 2022, o Governo apresentou um conjunto de medidas para conter os efeitos da inflação sentida em Portugal desde o início do segundo semestre de 2021. Apresenta-se de seguida um breve resumo das ações propostas pelo governo, por tipo de medida:
Medidas de âmbito fiscal ou parafiscal:
- Redução do ISP equivalente à redução do IVA para 13%;
- Suspensão do aumento da taxa de carbono;
- Flexibilização de pagamentos fiscais e de contribuições para setores mais vulneráveis;
- Isenção temporária de IVA sobre fertilizantes e rações;
- Redução do ISP sobre o gasóleo colorido e marcado agrícola;
- Redução do IVA para a taxa mínima na aquisição de equipamentos elétricos de substituição de aquecimento a gás.
Medidas dirigidas à formação dos preços da energia
Proposta ibérica de limitação dos impactos da subida do preço do gás
Criação do gás profissional para transporte de mercadorias;
Medidas dirigidas a setores específicos
- Subvenção para apoiar o aumento dos custos com gás das empresas intensivas em energia (160M€ apoio a 3000 empresas): apoio a fundo perdido que cubra 30% da diferença entre custos incorridos em 2021 e 2022 com um limite máximo de 400 mil euros.
- Desconto de 30 cêntimos/litro para o setor social
- Redução das tarifas elétricas para as empresas eletrointensivas
- Mobilização de recursos (18M€) para mitigar custos com alimentação animal e fertilizantes
- Utilização de saldos transitados do Fundo de Compensação Salarial do setor das pescas para apoiar aumento dos custos de produção
Apoios sociais
- Apoio ao preço do cabaz alimentar (60€) às famílias titulares de prestações mínimas. Este apoio começou por ser apresentado como uma transferência única em abril para os titulares da tarifa social de energia, tendo o universo de beneficiários sido alargado em maio. Os valores mensais deste apoio rondam assim os 5€;
- Medidas de apoio à aquisição de botija de gás (10€) para as famílias titulares de prestações mínimas.
Outras medidas
- Agilização do licenciamento de painéis solares;
- Simplificação dos procedimentos para a descarbonização da indústria;
- Reforço de 46M€ para instalação de painéis fotovoltaicos em 2022 e 2023 na agroindústria, exploração agrícola, aproveitamentos hidroagrícolas.
Inflação desmente Governo: reduz-se o peso dos salários no PIB
Historicamente, os períodos de inflação estão associados a perdas significativas da parte dos salários no conjunto dos rendimentos gerados pela economia (ver caixa). Este é o risco que enfrentamos novamente, agravado pela deterioração do poder negocial dos trabalhadores, nomeadamente em consequência da redução dos níveis de sindicalização e da abrangência das convenções coletivas de trabalho nas décadas mais recentes.
A indisponibilidade do Governo para atualizar pensões e salários à taxa de inflação prevista, para além de prolongar a perda real de poder de compra dos funcionários públicos (que se verifica há mais de uma década), constitui um referencial central para as negociações salariais no setor privado. Consequentemente, é possível antever uma transferência direta de rendimentos do trabalho para o capital sem precedente nas últimas décadas, inclusive no período de governação da direita e do programa da troika.
Segundo as projeções subjacentes ao Orçamento do Estado para 2022, o Governo prevê que ao longo deste ano os preços cresçam 4%. No entanto, não tem para já mostrado abertura para aumentos nominais para a função pública acima dos 0,9%, o que implica uma perda de poder de compra real de 3,1% para os funcionários públicos (se a variação do IPC for de 4%).
Se considerarmos que o setor privado segue a atualização salarial do Administração Pública, a conjugação de um aumento de 3,5% da produtividade com uma redução do salário médio real em 3,1%, resultaria numa redução da parte dos salários no PIB de 6,6%.
O Governo tem argumentado que, na atualização salarial dos funcionários públicos, deve ser considerado o efeito das progressões nas carreiras. Sem atualização, uma parte da justa retribuição pela progressão será erodida pela inflação. Ainda assim, tendo em conta o aumento previsto no OE2022 para as despesas com pessoal em contabilidade pública (2,5%), que incluem atualizações, progressões e novas contratações, a perda real de valor será de 1,5%, e o peso dos salários no PIB reduzir-se-à em 5%
Esta intransigência governamental é incompreensível num cenário em que o Governo beneficiará dos efeitos da folga orçamental criada pela inflação. Para além do efeito de redução do peso real da dívida pública já referido, a inflação traz um agravamento fiscal real em sede de IVA, mas também de IRS devido à não atualização dos escalões à taxa de inflação. Por si só, este efeito no IRS, denominado de “fiscal drag”, tem o potencial de reduzir o alívio que possa estar associado ao desdobramento do 3º e 6º escalões do IRS.
As estatísticas disponíveis não permitem o cálculo exato do efeito da não atualização dos escalões do IRS à taxa de IRS. No entanto, a partir de um exercício simples é possível obter uma aproximação ao impacto potencial da escolha do Governo. Assim, a atualização da matéria coletável em sede de IRS a uma taxa de 4% resultaria num aumento da receita até 526 milhões de euros (tendo em conta a taxa média de IRS). Esta medida está sobrestimada na medida em que a atualização salarial não será transversal, mas subestimada porque os dados se referem a 2020 (última série disponível), estando previsto um aumento da mesma em 2022.
Com uma inflação prevista de 4%, e sem as medidas adequadas para mitigar o aumento dos preços e atualizar os rendimentos, o Orçamento do Estado para 2022 falha às promessas do Governo de alívio fiscal, aumento dos rendimentos e de aumento dos salários no PIB.
A inflação e o peso dos salários no PIB - a experiência do passado
Na história recente de Portugal, verificámos isso mesmo nas décadas de 1970 e 1980, que corresponderam ao mais recente período de inflação significativa, em que as taxas de inflação homóloga chegaram a superar os 30% em várias ocasiões.
Nesse período de inflação significativa das décadas de 1970 e 1980, o crescimento dos preços acima do crescimento dos salários foi na realidade o principal mecanismo através do qual foi reduzida a parte dos salários no rendimento nacional.
A conjugação de níveis de inflação relativamente elevados com atualizações salariais insuficientes (designadamente devido à imposição de textos salariais abaixo da inflação) provocou alterações profundas na repartição funcional do rendimento, em detrimento do trabalho. Sempre que a taxa de inflação foi mais elevada, a parte dos salários no rendimento caiu de forma acelerada; quando a inflação foi mais moderada, a parte dos salários recuperou ligeiramente, ou pelo menos não caiu tão intensamente. Por outras palavras, níveis mais elevados de inflação estiveram associados à transferência direta de rendimentos do trabalho para a o capital, o que se deveu ao menor poder negocial dos trabalhadores no contexto das relações laborais e à indisponibilidade dos governos de então para conduzir politicamente o processo de uma forma que não implicasse este desenlace.
Add new comment