O que mais surpreende na alegação de que um dos traços novos da situação política em Portugal é a emergência de um partido liberal é a crença em que isso é mesmo novo, que se trata de um projeto político inovador que nunca tinha tido expressão entre nós desde 1974.
A verdade é que o partido liberal foi tendo vários nomes e tem a idade da contrarrevolução em Portugal. Insinuou-se no repúdio da Constituição da República com a invocação de que ela enfermava de “uma excessiva carga ideológica”, como a que se exprimia no primado da escola pública ou do Serviço Nacional de Saúde. O partido liberal foi o partido das privatizações que estiveram na génese do poder da elite de BPNs, BES e tutti quanti.
O partido liberal foi o partido das privatizações que estiveram na génese do poder da elite de BPNs, BES e tutti quanti
Nos anos oitenta, o partido liberal pôs em marcha uma estratégia organizada de tenaz sobre as políticas de igualdade e de democracia ampla que a revolução abrira e a Constituição consagrara. Por um lado, suportes universitários e mediáticos animaram na esfera pública a disputa do senso comum. Por outro, o cavaquismo catapultou essa disputa da hegemonia para as políticas de governo.
Não há espaço para dúvidas de que o partido liberal – fosse qual fosse o seu nome formal – triunfou nessa operação. Impôs a sua agenda de poder económico, social e político disfarçando-a de ciência ou de decorrência da ‘natureza das coisas’. O discurso do desdém sobranceiro pela política como suposta artificialidade contra as ‘leis naturais’ do mercado e da seleção social foi a forma que usou para fazer vingar a ideia de que as políticas liberais não são escolhas políticas como as outras, mas sim axiomas técnicos cuja evidência só o preconceito ideológico e a desinformação teimam em contrariar. Essa tese de que o mercado é natural e que quem o defende o mais ilimitado possível não tem preconceitos ideológicos é uma tática velha do partido liberal. É agora apresentada como nova, modernaça mesmo. E há quem caia na patranha.
Por outro lado, o partido liberal conseguiu constituir um bloco político amplo de poder de governação, no qual o Partido Socialista escolheu incluir-se em muitas dimensões essenciais. O “europeísmo convicto” deu cimento ideológico a esse bloco, na exata medida em que a orientação neoliberal triunfante na União Europeia foi adotada como delimitadora do espaço de possibilidade das políticas em Portugal.
O partido liberal é velho. E a sua proposta mais velha é. A modernidade que, por estes dias, é atribuída ao partido liberal, como suposta explicação do interesse que desperta nos mais jovens, tem muito mais de conformação que de rebeldia. Na verdade, o que a propaganda do partido liberal propõe hoje aos jovens é a mesma receita individualista que prometeu aos seus pais, é o mesmo ataque às políticas de igualdade de que Cavaco Silva e Passos Coelho, na política, ou Ricardo Espírito Santo e Fernando Ulrich, na finança, fizeram a apologia. Tudo velho, tudo a favor da minoria do costume.
E, mais que tudo, é a velha sedução para a competitividade, como alegada porta para a ascensão social – senão mesmo para a felicidade – que é usada pelos liberais que querem ser vistos como novos. Melhor que ninguém, como em tantos outros exercícios de desconstrução das armadilhas das modas, José Mário Branco desmontou também esta com mestria e mostrou o que nela há de perfídia velha:
“Pra castrar a juventude
Mascaram de virtude
O querer vencer sozinho
Ficam cínicos brutais
Descendo cada vez mais
Pra subir cada vez menos.”
Artigo publicado no jornal “Público” a 22 de abril de 2022