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Perspetivas sobre a negritude

O movimento da negritude deve delinear lições importantes para as movimentações antirracistas na atualidade, desde a necessidade e possibilidade de unidade para a luta política, como a importância da natureza das relações sobre os quais estes laços sociais e de luta se estabelecem.

A hegemonia cultural é um fenómeno definido pelo intelectual António Gramsci como o tipo de dominação ideológica de uma classe social sobre a outra, criada “no seio da tradição marxista para pensar as diversas configurações sociais que se apresentavam em distintos pontos no tempo e no espaço”. O movimento antirracista tem questionado a hegemonia social, ao longo dos séculos, do capitalismo racial que efetivou a divisão étnico-racial da sociedade. As condições para esta teoria consubstanciam-se pela primeira vez com a diáspora africana, uma vez que a existência de hostilidades para as comunidades fora das suas regiões de origem forneceram uma maior necessidade de entender de forma mais compreensiva este enquadramento social.

A nível literário, esta expressão já era latente no Brasil com uma forte cultura poética anti-esclavagista, tendo-se manifestado nos EUA nos movimentos de Black renaissance (que envolvia bastante a cultura do jazz). Nos anos 20 do século XX, estas mensagens afro-americanas de reivindicação já tinham viajado de continente e, desse modo, floresceu um movimento em Paris que uniu estudantes franco-africanos numa unidade de vontade da criação de uma literatura que comunicasse verdadeiramente de e para os negros. Este ambiente de procura de éticas e estéticas vanguardistas culminou na criação da revista “Légitime Défense”, tendo seguido posteriormente a fundação do jornal estudantil “L'Étudient Noir”, cujos fundadores eram Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire e Léon Damas. Foi neste momento que o diálogo entre autores se intensificou na procura de um caminho que impregnasse a cultura de uma acesa contestação ao sistema de injustiça racial.

1. Nasce a negritude!

Aimé Césaire foi quem criou o termo em 1935, no número 3 da revista “L'étudiant noir” ("O estudante negro"). Como precursor deste movimento, tendo sido a obra “Cahier D’un Retour Au Pays Natal” (1939) a fundamentar esta sua posição.

Haiti

where negritude rose for the first time and stated that it believed in its humanity

and the funny tail of Florida where the strangulation of a nigger is being

completed,

and Africa gigantically caterpillaring up to the Hispanic foot of Europe,

its nakedness where death scythes widely.”

Com o conceito pretendia-se em primeiro lugar reivindicar a identidade negra e sua cultura, perante a cultura francesa dominante e opressora, e que, ademais, era o instrumento da administração colonial francesa. O nascimento deste conceito, e o da revista “Présence Africaine” (em 1947) de forma simultânea em Dakar e Paris teve um efeito explosivo.

Ligado em particular ao anticolonialismo, o movimento posteriormente influenciou muitas pessoas próximas ao nacionalismo negro, estendendo-se muito além do mundo francófono.

2. Negritude, essencialista e universalizante

Césaire, ao longo da sua vida, começou por distanciar-se desta linha ideológica, considerando que os pontos em comum que as elites negras intelectuais (a etnia) apresentavam não eram suficientes para estabelecer vínculos políticos (excluindo o género, a classe, identidade sexual, etc). O conceito, muitas vezes erigido como ideologia e até mesmo como ontologia, passaria a ter um ou vários sentidos ambíguos. Muitas vezes longe de formar uma consciência contra as violências do subdesenvolvimento, a negritude dissolveu os negros e seus negro-africanos num essencialismo inofensivo para o sistema que subtrai aos homens e mulheres a sua identidade. Este movimento transformou a sua cultura num produto da abstração de alguns poucos membros da elite e do seu discurso de autenticidade ligado à etnia negra e ao espaço geográfico da África.

Muitos autores críticos não demoraram a fazer a denúncia de uma cultura exotificada, confinada por uma elite colonial que se institui como sua protetora, prendendo-se a aspectos específicos e isolados, sem diálogo com a cultura popular.

3. A liberdade é uma luta constante

É preciso falar sobre libertar mentes, tal como sobre libertar a sociedade”- A. Davis

Será, certamente, redutor só analisar as falhas deste movimento, sem ter em conta a sua necessidade fundamental na dignificação de milhares de afrodescentes que encontraram raízes políticas, intelectuais, sociais e culturais num mundo que dizia que eles não tinham história. No entanto, o movimento da negritude deve delinear lições importantes para as movimentações antirracistas na atualidade, desde a necessidade e possibilidade de unidade para a luta política, como a importância da natureza das relações sobre os quais estes laços sociais e de luta se estabelecem. É importante relembrar que a negritude surgiu para romper com os dogmas que afligiam as comunidades racializadas e não para possibilitar a fundamentação de uma hierarquia do que significa ser "puramente" negro.

Uma vez ouvi dizer que a luta devia ser lembrada como o nosso sítio de felicidade e que as experiências coletivas devem ser os momentos que olhamos para trás e aos quais queremos voltar. Terá sido esta ausência a falha fundamental de um movimento que imperava pela emancipação de um grupo social e que, ao invés disso, reduzia os seus elementos a uma característica identitária?

Não devemos esquecer que o objetivo da luta é o fim da segregação, da violência, e não a consagração da separação per se. Queremos igualdade no acesso a bens essenciais, queremos igualdade para pensar, para existir sem medos, para ser plenos. Este movimento é urgente e necessário, mas não nos podemos esquecer de aprender com os seus erros, da sua radicalidade e do propósito que visa cumprir. É a esperança de que isto seja possível que nos faz continuar, de encontrar neste otimismo uma necessidade absoluta.

Sobre o/a autor(a)

Estudante e ativista da Greve Climática Estudantil.
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