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O biombo que esconde a outra emergência

Cavalgando entre urgências, como agora a da invasão da Ucrânia, a União Europeia desconsidera o desastre climático, que não dá votos, pelo que lhe basta um biombo de declarações piedosas.

A União Europeia mobilizou-se para atenuar os efeitos económicos e sociais da pandemia, suspendendo provisoriamente regras orçamentais restritivas, rompendo o interdito de contração de dívida comunitária e não olhando a despesas. São gastos €14 biliões nestas operações, sobretudo pelos orçamentos nacionais, mas também por verbas europeias até 2026, os PRR. Desta chuva de dinheiro, só 6% são atribuíveis a programas para reduzir emissões. A emergência do clima não faz parte das prioridades. Malgrado o ativismo dos jovens pela justiça climática, não é sentida pelos Governos como um risco eleitoral e, portanto, pode ser relegada para um longo prazo em que os atuais ministros já terão passado a sua glória e não haverá o perigo de serem responsabilizados. Cavalgando entre urgências, como agora a da invasão da Ucrânia, a União desconsidera o desastre climático, que não dá votos, pelo que lhe basta um biombo de declarações piedosas. No entanto, tem sido mesmo a guerra que tem sublinhado a importância de uma transição energética, um dos pilares da solução climática.

A exceção prometida a Portugal e Espanha (mas ainda não concretizada) quanto à criação de um teto para o preço do gás, contendo assim o aumento da eletricidade, sinalizou uma cedência da Comissão e abre um precedente, que discutirei depois. Aqui está, em qualquer caso, uma prova de sensibilidade eleitoral imediata à contestação popular contra a escalada dos preços da energia. No caso de Portugal, havendo maioria absoluta, o Governo limitar-se-á a medidas paliativas, mas essa margem de manobra não existe em Espanha, pelo que Pedro Sánchez já anunciou um menu de aumento de imposto sobre as elétricas, redução da tributação do consumo e generosos subsídios a sectores económicos. Correndo contra o prejuízo, os Governos almofadam o efeito dos preços. A questão é que a energia importada vai ser mais cara e a dependência europeia da Rússia é irreparável nesta década.

A Europa precisa da Rússia

Anunciou Biden que o seu país, que aumentará a produção de petróleo e relançará a de carvão, vai fornecer à Europa gás liquefeito suficiente para substituir até 2030 um terço da importação da Rússia. A medida comprova o irremediável. Segundo um relatório deste mês da Agência Internacional da Energia (AIE, dados de 2020) a dependência de combustíveis fósseis russos era na Holanda 54,8%, Alemanha 28,3% (mas no gás próximo dos 60%), Itália 25,1%, França 8,6% (mas pouco gás, o que permite a bravata de Macron) e Portugal 5,3%. Por maior que seja o acréscimo de oferta norte-americana, a Rússia, que fornece 10% a 25% do gás, petróleo e carvão do mundo, continuará a ser a maior exportadora para a Europa.

No caso de Portugal, havendo maioria absoluta, o Governo limitar-se-á a medidas paliativas, mas essa margem de manobra não existe em Espanha

A Casa Branca tentou convencer a Arábia Saudita e o Catar a aumentarem os seus envios para a Europa. A Saudi Aramco, que enriquece com o aumento dos preços e é já a segunda maior empresa do mundo em capitalização, tem o projeto de produzir mais 8% até 2027, duplica o investimento em 2022, mas mantém os seus contratos de longo prazo. E a Arábia Saudita coordena com a Rússia a OPEP, que planeia passar de 45% para 57% da produção mundial até 2040. Como um quarto da sua produção é exportada para a China (e já faz contratos em yuan, abdicando o dólar) e só 10% para a Europa e 7% para os EUA, entende-se porque o Governo saudita não quer comprometer essa aliança.

O regresso do nuclear e do carvão

Dependendo da importação da Rússia, as respostas europeias são diferenciadas. A França quer construir seis novas centrais nucleares para se tornar autossuficiente. A Alemanha suspendeu o fecho das últimas centrais e outros países relançam o carvão, mas mesmo esses recuos são insuficientes. Pelo seu lado, a UE definiu o objetivo de duplicar as renováveis até 2030, o que não resolve o seu problema energético e implica abdicar da meta climática. O carvão multiplica as emissões, o nuclear produz resíduos eternos, a União não sabe o que fazer.

Há duas outras alternativas à redução direta da produção de combustíveis fósseis. A primeira é a magia dos preços, cobrando pelo carbono emitido de modo a condicionar a produção poluente. Mas, como só um quinto da produção de gases com efeito estufa é afetado pela taxa de carbono, o objetivo de reduzir as emissões até 50% numa década não será alcançado. Segundo um estudo recente de Vítor Gaspar e Ian Parry, do FMI, o valor médio da taxa, que está em 3 dólares por tonelada, teria de ultrapassar os 75. O mercado não nos vai salvar. A segunda alternativa é sugerida pela AIE: reduzir o consumo. Segundo os seus cálculos, cortar o aquecimento das casas europeias em 1°C equivaleria a 8% das importações russas, para se ter um termo de comparação, ou passarmos a trabalhar quatro dias por semana e termos o domingo sem automóveis corresponderia a um quinto dessas importações. A AIE acrescenta outras sugestões, como baixar a velocidade permitida nas estradas, para gerar poupanças de combustível. Poderia ainda incluir-se o controlo da eficiência energética de outros produtos importados, que frequentemente internacionalizam a emissão poluente.

Medidas desse tipo foram tomadas em países europeus quando do choque do preço do petróleo há cinquenta anos. Agora, nenhum Governo se atreverá a isso, a não ser que a opinião pública o imponha. Seria preciso mostrar a crise que está detrás do biombo.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 1 de abril de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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