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Discursos e silêncios sobre a Guerra na Ucrânia
Sobre a guerra que está a destruir a Ucrânia, há dois discursos dominantes. Ambos pretendem ser explicativos e ambos são, na verdade, justificativos da guerra e das lógicas que a animam.
O primeiro é o discurso liberal. Dá voz à leitura do pós-Guerra Fria na Europa como uma dinâmica de expansão das democracias a Leste, num dominó de revoluções coloridas que trouxe sucessivos países ao quadro dos “valores europeus” e das instituições que lhes dão suporte. Este discurso vê na invasão da Ucrânia uma espécie de big bang da guerra: tudo o que fica para trás da invasão no tempo não é relevante e tudo se resume, portanto, a uma agressão gratuita a um povo, vitimando-o por ter escolhido a Europa e a sua cultura de direitos.
O discurso liberal é o discurso dos vencedores da Guerra Fria e sela a sua vitória com uma espécie de Clausewitz às avessas: a política é a continuação da guerra por outros meios. Por isso, o discurso liberal oculta convenientemente como foi ténue, em concreto, a linha divisória entre transição democrática e estratégias de regime change estimuladas pelo “lado de cá”. E nega-se a explicitar qualquer elemento de relação de poder, interno e internacional, nas mudanças políticas que ocorram no centro e leste da Europa desde os anos 90.
O segundo discurso é o discurso realista. Para ele, na Ucrânia como em tantos outros conflitos, o que se materializa é a disputa entre esferas de influência das potências. O sismo, que é a guerra, resulta do choque de placas tectónicas, que são as potências e as suas esferas de influência. Por isso, este discurso vê na invasão russa uma reação contra a expansão da NATO a Leste, valorizando o que nessa expansão tenha havido de constrangimento crescente da Rússia e de humilhação dessa grande potência.
É um discurso conveniente para a justificação da estratégia do Kremlin e do seu núcleo de poder. A imutabilidade das esferas de influência das potências foi sempre um argumento profundamente conservador e legitimador de vetos às escolhas dos povos. Para o discurso realista, há uma espécie de destino de países como a Ucrânia, a Geórgia ou a Moldávia e esse é o de não saírem nunca da dependência económica, política e militar da Rússia.
Antitéticos na sua formulação e nos seus fundamentos, o discurso liberal e o discurso realista convergem, porém, no essencial: são ambos discursos instrumentais das lógicas imperialistas. De um imperialismo global e triunfante, no caso do discurso liberal. De um imperialismo regional e de resistência, no caso do discurso realista. Apresentando-se como explicativos, ambos os discursos são, na verdade, discursos de justificação da guerra.
O debate entre estes dois discursos é marcado por dois sonoros silêncios.
O primeiro é o silêncio sobre a guerra como sublimação da deterioração das condições de vida e da projeção de horizontes coletivos, tanto na Rússia como na Ucrânia. No caso da Rússia, a sua periferização económica crescente depois da Guerra Fria significou um verdadeiro colapso do PIB (atualmente inferior ao da Itália), a falência do rublo e uma concentração da base de afirmação internacional da economia quase exclusivamente na exportação de petróleo e de gás natural. No caso da Ucrânia, o programa de “transição para o mercado” e sobretudo a terapia de choque imposta como contrapartida dos gigantescos créditos acordados com o FMI trouxeram consigo um aumento exponencial da pobreza e das desigualdades e um afundamento da economia numa dívida externa colossal. Em ambos os países, o outro lado destas espirais de empobrecimento resultantes das políticas de austeridade e liberalização foi a formação de burguesias nacionais assentes na predação dos anteriores bens públicos e em intensíssimos processos de acumulação de riqueza com traços mafiosos.
Ora, a exacerbação do nacionalismo e a demonização de um inimigo externo é uma estratégia habitual de sublimação do apodrecimento do tecido social e da perda de horizontes de afirmação pessoal e coletiva. Isso é indiscutível nos casos da Rússia e da Ucrânia. Prevenir a guerra teria passado por atuar neste terreno das condições e horizontes de vida de russos e ucranianos. E isso manifestamente não foi sequer equacionado.
O segundo silêncio dos discursos dominantes sobre a guerra é o que diz respeito à abertura de um processo de construção da paz. Há um capital de décadas de conhecimento e de experiência sobre construção, imposição e manutenção da paz, com gerações sucessivas de operações de paz levadas a cabo pelas Nações Unidas que os discursos dominantes sobre esta guerra remetem ao esquecimento absoluto. Sugerem sibilinamente que tudo isso é apaziguamento, algo que estigmatizam com os rótulos de fraqueza ou mesmo de traição.
Valerá a pena parafrasear Marx: os comentadores têm apenas interpretado a guerra de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-la.
Artigo publicado no jornal “Público” a 31 de março de 2022
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O que fica por dizer é que á
O que fica por dizer é que á Rússia, quer como parceiro comercial, quer como destino de investimento, foi dada a possibilidade de consolidar o seu poder em termos económicos e desenvolvimentistas, sem condições de desarmamento, tal como ocorreu com a China.
Ficou-se pela ambição de domínio territorial e do poder militar, e só por isso motivou que as alianças defensivas se reforçassem em resposta.
Em final verifica-se que nem poder militar construiu, ficando-se pelo poder de levar a destruição ao território que visava dominar.
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