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A Defesa da Autodeterminação tem dias: o caso do Saara Ocidental

Desengane-se quem acha que isto é um problema de Espanha. Não é. Todas vozes que, em todo o mundo, se têm levantado a favor da indiscutibilidade do direito à autodeterminação estão confrontadas com uma exigência de coerência. O Governo português também, portanto.

O amplo movimento de repúdio da invasão russa da Ucrânia e da guerra por ela originada tem assumido o direito à autodeterminação dos povos como pilar indiscutível das relações internacionais contemporâneas. As considerações de realpolitik ou as leituras centradas nos equilíbrios geopolíticos entre as zonas de influência das potências têm sido invariavelmente desconsideradas.

Se uma condenação assim firme de todas as violações do direito à autodeterminação dos povos se vier a instalar como resultado da rejeição desta guerra e das lógicas imperiais que a causaram e alimentam, a ordem internacional terá dado um passo importante. Temo que assim não venha a ser e que a firmeza na defesa da autodeterminação continue a variar em função das emoções e das conveniências do momento. O que se está a passar no Saara Ocidental é disso prova.

Em recente carta do primeiro-ministro espanhol ao rei de Marrocos, Pedro Sánchez afirma que a proposta de um “regime de autonomia especial” para o Saara, apresentada por Rabat em 2007, é a “mais séria, realista e credível” para a resolução do conflito que se arrasta naquele território desde 1975. Com este gesto, o governo espanhol reincide na desconsideração do direito do povo do Saara Ocidental e do seu direito à autodeterminação. Fê-lo logo em 1975, ao transferir a administração da sua ex-colónia para Marrocos e para a Mauritânia. Essa desresponsabilização, que se manteve desde então, culmina com este reconhecimento de facto da soberania marroquina sobre o Saara, como penhor da garantia da “estabilidade, soberania, integridade territorial e prosperidade dos nossos dois países”, como escreveu Sánchez. Estabilidade, leia-se controlo dos fluxos migratórios. Prosperidade, leia-se aliança entre Espanha e Marrocos no dossiê gás natural. Integridade territorial, leia-se intocabilidade dos vestígios coloniais espanhóis de Ceuta e Melilla e inclusão do Saara Ocidental em Marrocos.

A racionalidade deste passo de Madrid tem, pois, a marca fria do primado da realpolitik sobre o tal pilar indiscutível das relações internacionais contemporâneas. A verdade é que os povos e os seus direitos não são todos iguais. Referindo-se à Ucrânia, o Secretário de Estado norte-americano Anthony Blinken afirmou que o conceito de esferas de influência, “no qual um país subjuga os vizinhos contra a sua vontade” está “ultrapassado”. Só está às vezes. O Saara Ocidental não é uma dessas vezes.

Desengane-se quem acha que isto é um problema de Espanha. Não é. Todas vozes que, em todo o mundo, se têm – e bem – levantado a favor da indiscutibilidade do direito à autodeterminação estão confrontadas com uma exigência de coerência. O Governo português também, portanto. Vai o Governo usar os argumentos do costume (boa vizinhança, não ingerência nos assuntos de outros Estados, convergência de posições europeias) para alinhar com o “realismo” de Madrid (e com Marrocos, por tabela) a propósito do Saara Ocidental, ou vai ser coerente com o discurso forte da exigência de cumprimento escrupuloso do Direito Internacional, contra ocupações, usurpações de território e de recursos e violações de direitos básicos dos povos? Vai o Governo português, face às novas adversidades criadas ao povo saarauí por Pedro Sánchez, ser coerente com o papel histórico que Portugal teve na defesa da autodeterminação do povo de Timor – contra todas as chantagens de realpolitik de então – ou vai esquecer tudo isso e fingir que o Saara é diferente? E a sociedade portuguesa, que gestos de solidariedade vai ter para com um povo, nosso vizinho, a quem a força e a conveniência negam a soberania e a independência?

Artigo publicado em expresso.pt a 29 de março de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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