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Armamento, um negócio como os outros?

A indústria portuguesa de armamento abasteceu conflitos como os da Etiópia, Afeganistão, República Centro-Africana, Líbia ou Somália, em alguns casos com a venda de "agentes tóxicos químicos ou biológicos, agentes antimotim, materiais radioativos".

O consórcio internacional de jornalistas Investigate Europe realizou uma grande reportagem sobre o modo como a UE tem apoiado financeiramente a expansão de uma indústria cuja propriedade está muito concentrada em alguns estados e fundos de investimento privados, a do armamento.

Em 2015, depois da invasão da Crimeia pela Rússia, a Comissão Europeia criou um "Grupo de Personalidades" para aconselhar uma estratégia de Defesa. Dos 16 membros, sete pertenciam à indústria militar e não houve lugar no grupo para académicos ou representantes de organizações da sociedade civil.

As recomendações daquelas personalidades, vertidas depois no Plano de Ação Europeu de Defesa, levaram à criação de programas de financiamento de investigação e desenvolvimento militar e à constituição do Fundo Europeu de Defesa.

É neste contexto que os 90 milhões gastos pela UE em desenvolvimento militar entre 2017 e 2019 cresceram para 500 milhões em 2020. Atualmente, o programa de defesa tem 7900 milhões de euros. Apesar da dimensão, a informação sobre a utilização destes fundos é escassa e nem o Parlamento Europeu é chamado a participar nas decisões de investimento.

Segundo esta investigação, 75% dos fundos do Programa Europeu de Desenvolvimento Industrial de Defesa foram parar a cinco grupos: Thales, Leonardo, Indra Sistemas e Dassault. Embora tenham empresas em vários países - a Thales comprou a portuguesa Edisoft, privatizada em 2013 -, estes grupos têm ligações entre si e a sua propriedade está bastante concentrada. Para além dos estados francês, italiano, alemão e espanhol, pertencem a um pequeno número de fundos de investimento norte-americanos, como a Blackrock, Capital Group e Vanguard, que são também acionistas das concorrentes norte-americanas de armamento.

As diferentes estratégias dos estados com investimento nestes projetos constituem uma dificuldade na coordenação, mas os especialistas citados na investigação apontam sobretudo para os perigos da concentração da indústria de defesa europeia nas mãos de fundos privados: preços acima de mercado, corrupção e lobby e falta de inovação. Estes perigos aumentam se tivermos em consideração as portas giratórias que existem já entre a Agência de Defesa Europeia e a indústria do setor.

A guerra na Ucrânia levantou um importante debate sobre a estratégia de Defesa europeia. Há até quem se lance na proposta de um exército europeu, quando a Europa não consegue sequer ter uma política coerente de Defesa e critérios claros na exportação de armas, por exemplo. Se a França, a Alemanha e a Itália continuaram a fornecer armas à Rússia depois do embargo, a indústria portuguesa de armamento abasteceu conflitos como os da Etiópia, Afeganistão, República Centro-Africana, Líbia ou Somália, em alguns casos com a venda de "agentes tóxicos químicos ou biológicos, agentes antimotim, materiais radioativos".

Quando se fala de coordenação europeia de Defesa, seria bom começar por dar aos contribuintes garantia de que o uso do seu dinheiro respeita regras de transparência e limites políticos relacionados com a Carta das Nações Unidas e os direitos humanos. Até lá, são o negócio e a hipocrisia que falam mais alto.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 29 de março de 2022

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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