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O mundo está mais perigoso, mas não por eles serem loucos
O discurso político sempre alimentou gangues inflamados, mesmo que agora a agressividade se expanda mais depressa pelas redes sociais. Trump não foi o primeiro a chegar ao poder na base da mentira e do insulto, muitos antes dele já haviam usado a mesma técnica, mas talvez tenha sido no nosso século quem a levou mais longe: nos comícios gritava-se “prendam Hillary”, e os seus apoiantes ainda acreditam na pretensa conspiração de democratas que sequestrariam crianças para rituais satânicos numa pizzaria em Washington.
Nesta deriva do discurso está a ser dado um novo passo, e não é pequeno, com a patologização dos adversários, que produz um efeito de agregação, mobilizando uma claque por via do ódio ao inimigo e desumanizando a outra parte. Junto os meus, ataco os outros, assusto os do meio, é a velha máxima da política-guerra. Por isso, o uso de designações patologizantes continuará sempre a ser feito por quem delas espera obter vantagem circunstancial. É assim no nosso mundo: tudo o que é simplificado tende a ser multiplicado. Mas, se este procedimento já é obscurantista quando coloniza o discurso banal, torna-se ainda mais absurdo quando é um instrumento de análise.
São loucos?
Putin está “seriamente doente”, escreve um cronista; está “paranoico, louco e raivoso”, diz uma cidadã russa imigrada. Ouve-se disto em todo o lado. O diagnóstico, mesmo que contrariado por alguns analistas, percorre avenidas no quotidiano desta guerra, e há muitos que entendem que se deve agravar a condenação do crime usando esse epíteto para carregar sobre o mandante. O efeito é paradoxalmente errado. Em primeiro lugar, porque obstaculiza a compreensão dos interesses que se movem em cada decisão guerreira, tornando-os obscuros e indecifráveis. Em segundo lugar, desculpabiliza a guerra com essa insanidade, retirando-a do domínio da racionalidade e até da responsabilidade (um louco pode ser responsabilizado?).
Esta guerra é uma escolha, não é uma alucinação. É pior e faz do mundo um lugar mais perigoso
Em qualquer caso, a loucura não explica nem esta nem provavelmente nenhuma outra guerra moderna. Seria Hitler louco por precipitar a Guerra Mundial e depois conduzir o Holocausto? Seria Salazar louco por arrastar Portugal para uma Guerra Colonial sem solução? Ou, se se quiser, estaria Truman louco quando fez cair as bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, um ato militarmente inútil perante um adversário vencido, mas provocando uma tragédia desumana? Tais casos de escolhas exterminadoras evidenciam que estas guerras não foram o resultado de loucura, antes foram o resultado de cálculos segundo uma motivação estratégica ou um interesse próprio (a aniquilação genocida, a posição imperial, a demonstração de força). O mesmo se poderia perguntar da ocupação do Afeganistão pela NATO ou da Cimeira das Lajes: estariam loucos Bush ou depois também Aznar, Blair e Durão Barroso, mentindo para se precipitarem em guerras que viriam a perder? A desordem mental não tem qualquer valor explicativo para estas decisões.
É pior do que a loucura
A invasão da Ucrânia não resulta de um delírio de Putin. É função de um projeto que ele explicou claramente: restabelecer fronteiras do império czarista e corrigir o alegado erro da URSS na independência da Ucrânia. Confiante na superioridade militar e menosprezando um povo soberano que não reconhece, é evidente que Putin se enterrou numa guerra que só pode perder. Nenhum dos seus objetivos pode ser alcançado, e sairá disto numa posição enfraquecida. Em todo o caso, não foi a loucura que o determinou, mas sim um cálculo errado, que dá a vitória aos Estados Unidos. É pior do que a loucura irracional, é a vontade da guerra e da ocupação que conduz as tropas russas. Esta guerra é uma escolha, não é uma alucinação. É pior e faz do mundo um lugar mais perigoso.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 18 de março de 2022
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Se o puro imperialismo não é
Se o puro imperialismo não é uma doença de carácter, o que será?
Eu não sou um profissional da
Eu não sou um profissional da área de psquiatria ou psicologia, mas também considero que é visível a banalização do uso dos adjetivos patológicos no nosso cotidiano, eu mesmo as vezes cometo esse crime. Mas também é visível que a presença de indivíduos com sintomas de psicopatias em postos chaves aumenta no mundo. Numa entrevista ao Bussines Insider, Kevin Dutton, um psicólogo e escritor britânico, disse que algumas áreas atraem mais psicopatas e é onde eles ficam mais à vontade (política, forças armadas e de segurança, altos cargos executivos, etc.).
No artigo, parece que o professor Louçã considera que psicopatias retiram totalmente a capacidade de raciocínio, de lógica e a inteligência de quem sofre desses distúrbios, mas temos que considerar que muitas apenas distorcem percepções, valores e princípios.
De acordo com o neurocientista Ricardo Oliveira da UniRio e do Instituto D'Or (do Brasil), especialista em psicopatias, sociopatas não são particularmente inteligentes, apenas uma minoria deles é, mas essa minoria sobressae-se muito.
O Professor Louçã fala que os objetivos de Putin, de recriar as fronteiras da ex-URSS fazem parte de uma escolha, é óbvio que sim e é óbvio que vemos que seu projeto da grande Rússia tem uma lógica e foi muito planejado, com ações a curto, médio e longo prazos. Por outro lado, essas escolhas não parecem ser brilhantes ou fruto de uma mente superior.
Eu diria também que, para analisarmos as ações de Putin, precisamos olhar os discursos e os textos que Putin tem escrito nesses mais de 20 anos no poder, neles há um forte sentimento de grandeza e superioridade russa, quase megalômano e, cada vez mais, esses discursos mostram que Putin considera-se a personificação do nacionalismo, do governo, do estado, do país e até da nação russa. Para tanto, é capaz de reescrever e inventar a história da Rússia, da URSS e de seus vizinho, para que essa "história" enquadre-se no seus desejos e no que ele acha o que deveria ser e expressar a grandeza da Rússia/Putin.
Valem algumas observações que dizem muito do comportamento de Putin nesses 20 anos de poder absoluto, o isolamento, que me permito definir como paranóico e a vingança contra qualquer opositor ou adversário (políticos, jornalistas, ativistas), transformados em inimigos e considerados e taxados de traidores da Rússia/Putin e que acabam presos ou mortos. Até os que fogem para o exterior têm sido assassinados. O que definiria esse comportamento, um maquiavelismo à enésima potência ou um distúrbio?
A forma que o Professor Louçã trata a guerra de Putin faz-me lembrar o pensamento de Robert McNamara, secretário da defesa de Kennedy e de Johnson, e como ele tratou a guerra do Vietnan. Mcnamara achava que a guerra era algo absolutamente racional, quase cartesiana. Será que podemos considerar que todas as ações de Putin partem de um princípio e uma racionalidade igual? McNamara (como diz-se no Brasil), quebrou a cara e os USA transformaram uma guerra do outro lado do planeta, num país minúsculo (em alguns pontos tem pouco mais de 40km de largura), no maior atoleiro militar de sua história.
É possível separar o maquiavelismo puro de uma psicopatia ou não seria esse maquiavelismo puro uma forma de psicopatia? Especialmente de que tem poder quase absoluto, como os ditadores, os autocratas e afins.
Seria interessante que o Esquerda.Net trouxesse especialistas da área para discutir essa questão.
PS. Perdoem as diferenças de escrita e até de lógica de texto, que são muito diferentes no Brasil e em Portugal.
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