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Os sistemas de saúde “Bismarckianos” são melhores do que o nosso?

As comparações apontam que as diferenças de resultados entre os países europeus não se deve ao tipo de sistema adoptado mas sim a diferenças organizacionais e de financiamento entre cada país. Por Bruno Maia.

Os sistemas de saúde europeus dividem-se, historicamente, em dois grupos, quanto à forma do seu financiamento. O nosso, “Beveredgiano”, supõe que o Estado financia e presta os cuidados de saúde num serviço público, acessível a todos. É o sistema de sáude no Reino Unido, Suécia ou Dinamarca. O outro grupo são os “Bismarckianos” que, ao contrário do SNS, preveem a existência de um seguro de saúde obrigatório financiado em parte pelo próprio cidadão e em parte pelo empregador - neste modelo, a prestação de cuidados pode ser, essencialmente, privada mas o Estado detém um papel fundamental de regulação do financiamento, universalidade e prestação dos cuidados. Alemanha, França e Holanda são exemplos.

Na última campanha eleitoral, a Iniciativa Liberal tornou-se vocal na defesa de uma transformação do SNS para um sistema semelhante ao “Bismarckiano”. Mas as propostas da direita nesse sentido têm história: a reivindicação “ADSE para todos” abraçada no passado pelo CDS, é disso exemplo. A reivindicação de Rui Rio de aumento das convenções do SNS com o setor privado, vão disfarçadamente nesse sentido.

Têm sido feitas, ao longo das últimas décadas, comparações sistemáticas entre ambos os tipos de sistemas de saúde e todas chegam à mesma conclusão: as diferenças de resultados entre os países europeus não se deve ao tipo de sistema adoptado mas sim a diferenças organizacionais e de financiamento entre cada país. É isso mesmo que demonstram Gaeta et al. num artigo original publicado no Journal of Preventive Medicine and Hygiene, em 2017(1) – “pode-se afirmar que os melhores resultados em saúde são explicados por fatores económicos específicos de cada país [europeu]”.

Or et al., num artigo publicado na revista “Health Economics, Policy and Law”, sugerem mesmo que adotar uma estratégia de “copy-and-paste” de um país para outro será, como propõem os liberais, é ineficaz(2). E isso facilmente percebemos, olhando para a realidade dos países: há listas de espera em países “bismarckianos”, tal como há países “beveridgianos” que não têm listas de espera. Com a agravante de a Saúde nos países “Bismarckianos” ser, consistentemente, mais cara, tal como mostram os autores numa análise comparativa entre França e Alemanha com a Dinamarca, a Suécia e o Reino Unido:

Os liberais argumentam que se o utente tiver “liberdade de escolha”, entre público e privado, as unidades de saúde competirão entre si e aquela que oferecer maior qualidade, será a mais procurada e a mais rentável. Isto levaria, em teoria, a um aumento de qualidade no público e no privado. Infelizmente (e mais uma vez) a realidade veio contrariar esta teoria. O Reino Unido optou por experimentar este caminho há, pelo menos, duas décadas mas os resultados já foram avaliados e são negativos: o relatório “Audit Comission and Healthcare comission” de 2008, não encontrou qualquer evidência de que uma maior escolha tenha conduzido a maior qualidade nos serviços – a competição não resultou em melhoria, como mostram  Bevan et al. numa análise ao relatório, publicada em 2010(3).  Nesse mesmo relatório concluiu-se que a maioria dos utentes não desejava “uma maior escolha” de hospitais mas sim mais qualidade no hospital mais perto de si.

Em conclusão: não há diferenças na qualidade dos cuidados, no acesso ou nas listas de espera entre países com sistemas “Beveridge”(Portugal, Reino Unido, Dinamarca, Suécia) e países com sistemas “Bismarck” (Alemanha, Holanda, França). O que há é diferenças de financiamento e organização entre cada país, independentemente do sistema. Ou seja, a proposta dos liberais de mudarmos o financiamento do SNS para outro sistema, é inócua. Só nos faria perder tempo, sem ganhos nenhuns.
 


Bibliografia:

1 - Gaeta M, Campanella F, Capasso L, Schifino GM, Gentile L, Banfi G, Pelissero G, Ricci C. An overview of different health indicators used in the European Health Systems. J Prev Med Hyg. 2017 Jun;58(2):E114-E120.

2 - Or Z, Cases C, Lisac M, Vrangbaek K, Winblad U, Bevan G. Are health problems systemic? Politics of access and choice under Beveridge and Bismarck systems. Health Econ Policy Law. 2010 Jul;5(3):269-93.

3 - Bevan G, Helderman JK, Wilsford D. Changing choices in health care: implications for equity, efficiency and cost. Health Econ Policy Law. 2010 Jul;5(3):251-67.

 

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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