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Maldita Constituição

Entendeu o Presidente que a reunião do Conselho de Estado não esperaria pela posse da Assembleia e pela eleição dos novos membros do Conselho, mas há quem esteja furioso com essa decisão e trate Marcelo como o pior traidor.

Vai por aí um fuzuê acerca do Conselho de Estado da próxima semana [14 de março de 2022]. Entendeu o Presidente que a reunião não esperaria pela posse da Assembleia e pela eleição dos novos membros do Conselho, mas há quem esteja furioso com essa decisão e trate Marcelo como o pior traidor. Imagine-se, vai sentar infiéis na reunião, o que indigna as cândidas almas liberais.

“Sejamos verdadeiros, assumamos as consequências [...] Não faz nenhum sentido que pessoas que são cúmplices de Putin estejam presentes no Conselho de Estado em Portugal, que é uma democracia liberal”, diz um dos campeões do protesto, Raul Vaz, apoiado com petições expulsórias e iniciativas quejandas. A aleivosia da alegação é notória, nem suponho que os autores a queiram esconder, mas a atitude é curiosa: já há quem pense que pode impunemente insinuar que quem recusa a invasão putinesca e defende o direito soberano da Ucrânia está assim a demonstrar o seu disfarçado apoio ao Kremlin. Este procedimento tudo permite, como é bom de ver, mesmo que seja filho de um tradicional ‘segura-me-se-não-eu-bato’. Mais terra a terra, a deputada da extrema-direita apela a que se “exorcizem os demónios vermelhos”.

Para agravar o caso, os tais infiéis alegam em sua defesa a Constituição da República, que no nº 2 do artigo 7º afirma que “Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos”. Maldita Constituição, que não foi exorcizada dos tais demónios e ainda defende o fim dos blocos político-militares, propondo uma ordem internacional baseada na segurança, na não-ingerência na soberania de outros países (e na não- invasão, já agora) e no direito à autodeterminação dos povos. Como compreendo Vaz e os seus peticionários purificadores, não haviam de ferver de indignação ao saberem que esta Constituição ainda está em vigor?

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 11 de março de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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