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Ucrânia e a geopolítica da classe trabalhadora

Condenar a invasão russa é evidente para quem reconhece a causa da emancipação nacional e vê na Federação Russa uma potência imperialista. Quem, perante a invasão russa, tem mais pressa em condenar outras potências imperialistas está a desconversar.

Não devíamos saber tão pouco sobre a Ucrânia e sobre o chamado Leste da Europa. No início do século XXI, Portugal recebeu milhares de trabalhadoras e trabalhadores vindos da Ucrânia e de outros países da região. Essa foi a primeira grande vaga contemporânea de imigração desligada da história colonial portuguesa.

No início do século XXI, Portugal recebeu milhares de trabalhadoras e trabalhadores vindos da Ucrânia e de outros países da região. Essa foi a primeira grande vaga contemporânea de imigração desligada da história colonial portuguesa

Numa fase anterior, a partir dos anos 1980, tinham chegado a Portugal imigrantes africanos, oriundos principalmente dos antigos territórios ocupados em África, com destaque para os trabalhadores cabo-verdianos da construção civil. Pelo caminho, a legislação da cidadania e da imigração apertou para manter à margem esta fração da classe trabalhadora.

Nos anos 1990, o crivo legal apertou mais ainda com a adesão ao Espaço Schengen, no contexto da integração no Mercado Europeu/União Europeia. A livre circulação interna significou sempre muros mais altos para fora e exclusões sociais mais duras cá dentro. A vida tornou-se mais precária para os trabalhadores que não fossem da Europa Ocidental.

Na primeira década do século XXI, a proporção de população estrangeira entre as profissões consideradas não qualificadas ou pouco qualificadas aumentou, em Portugal, de 21.5 por cento para 26.7 por cento, conforme os censos de 2001 e de 2011. Por essa altura, a sociedade portuguesa maioritária tinha naturalizado o trabalho na construção (para os homens) ou nas limpezas e serviços domésticos (para as mulheres) como o lugar social quer de africanos/afro-descendentes, quer de ‘ucranianos’. Sendo que aqui ‘ucranianos’ era usado como um nome genérico que, sem respeito pelas origens nacionais, era aplicado quer a ucranianos quer a outros migrantes da Europa de Leste1.

Atualmente, as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros são a maior maior comunidade imigrante em Portugal. No entanto, depois destes e logo a seguir à população cabo-verdiana, registam-se cerca de 30 mil cidadãos e cidadãs da Roménia, mais outros tantos da Ucrânia residentes em Portugal. E nestes números não se contam aquelas e aqueles que felizmente já obtiveram a cidadania portuguesa e deixaram de ser (atuais ou futuros) trabalhadores com direitos políticos limitados2. Esta composição da classe trabalhadora, a par com o passado colonial, coloca questões sobre a forma como Portugal deve refletir sobre o seu passado, a sua identidade e o seu lugar no mundo. A história do leste da Europa não é também a nossa história?

Há uns anos, decidido a refletir sobre a pergunta “Os proletários não têm pátria?”, descobri uma história da Europa de Leste que nunca me tinha sido contada na escola e cuja profundidade nem mesmo durante o curso de Relações Internacionais tinha compreendido. À procura da causa da “libertação nacional” no Manifesto do Partido Comunista que Marx e Engels escreveram em 1848, deparei-me com o facto de a independência da Polónia ser a única causa de emancipação nacional que aparece explícita. Não se trata de um acaso. Anos mais tarde, a Associação Internacional dos Trabalhadores (conhecida como Primeira Internacional, 1864-1876) formulou claramente o eixo da sua política externa: “Resistência a invasões russas na Europa – Restauração da Polónia”3. Que tem a Polónia a ver com tudo isto?

A República da Polónia de que falavam não era só a Polónia, incluía também a Lituânia, a Bielorrússia, Letónia e grande parte da Ucrânia e da Estónia, bem como as atuais províncias ocidentais russas de Smolensk e Kaliningrado. Tratava-se de restaurar a independência da histórica República das Duas Nações (criada em 1569, pela assinatura da União de Lublin) e entretanto repartida pelos impérios russo, austro-húngaro e prussiano por sucessivas partições (1772, 1793, 1795).

A antiga República das Duas Nações, formalmente Coroa do Reino da Polónia e do Grão-Ducado da Lituânia, unificava num formato “semi-confederal” as comunidades políticas que já desde 1386 eram governadas pelo mesmo monarca, através de uma união pessoal. No século XVII, chegou a existir o projeto da República das Três Nações, com a proposta de constituição de uma terceira entidade “confederada”, o Grão-Ducado da Ruténia, justamente para responder à revolta da população etnicamente ucraniana contra o domínio polaco-lituano. A aristocracia polaco-lituana, no entanto, acabou por falhar essa promessa.

Esta grande república aristocrática do Leste da Europa foi precursora da limitação do poder dos monarcas. E, em 1791, foi mais longe, deu um passo que lhe valeu o ódio dos impérios vizinhos e a simpatia do movimento revolucionário europeu. A constituição polaca de 1791, a primeira constituição escrita da Europa, é considerada um eco da Revolução Francesa de 1789. Sendo a razão do desmembramento da República pelas potências reacionárias da Santa Aliança (Prússia, Áustria-Hungria, Rússia) nos anos seguintes.

Marx e Engels atestam a centralidade da questão “polaca” para o “programa da política externa dos trabalhadores da Europa Ocidental e Central”

Em vários discursos e artigos ao longo dos anos, Marx e Engels atestam a centralidade da questão “polaca” para o “programa da política externa dos trabalhadores da Europa Ocidental e Central”. As razões prendem-se com vários aspetos. Desde logo, o acesso das nações ao autogoverno, além de ser um critério democrático, liberta a luta social para outras questões dentro do território emancipado e quebra o poder das classes dominantes também nas metrópoles das potências imperiais. Sendo de sublinhar, no que à Polónia histórica diz respeito, a sua posição geopolítica confere à emancipação da velha República um papel estratégico para o movimento dos trabalhadores da Europa: a “divisão da Polónia é o cimento que une os três grandes déspotas militares: Rússia, Prússia e Áustria”, pelo que somente “o renascimento da Polónia pode rasgar esses laços e, assim, remover o maior obstáculo no caminho para a emancipação social dos povos europeus”4.

O entusiasmo de Marx e Engels com a causa associava-se ao enaltecimento da revolução de Cracóvia de 1846: que “atacou as três potências” – Rússia, Áustria e Prússia – “de uma vez; proclamou a liberdade dos camponeses, a reforma agrária, a emancipação dos judeus – tudo isto sem um momento de ansiedade sobre se isto podia ir contra este ou aquele interesse aristocrático”. Afirmava Engels que a revolução de Cracóvia não queria restabelecer a Polónia do passado, “não era reacionária, nem conservadora”, “era até mais hostil à própria Polónia [do passado] do que aos seus opressores estrangeiros; hostil à Polónia do passado, bárbara, feudal, aristocrática, fundada na escravatura da maioria do povo”5.

Esta história, parte do tanto que era importante sabermos sobre a história da Europa de Leste, é anterior não só à unificação alemã de 1871 (a outra causa nacional que aparece no Manifesto) como nos conta conflitos com potências imperiais anteriores ao novo imperialismo (que será mais tarde analisado por Lenin). Mas serve-nos para ajudar a pôr numa outra perspetiva um problema que é visto por muitos com lentes da Guerra Fria.

Todas as causas de emancipação nacional com conteúdo democrático merecem o nosso respeito. Não por acaso, Vladimir Putin chamou à Ucrânia uma invenção de Lenin. O aspirante a Czar do século XXI não perdoa ao revolucionário russo do século XX a clarividência de ter respeitado a vontade de autodeterminação da nação ucraniana através da sua própria república6.

O atual mapa dos Estados não é incontestável, resulta de uma inacabada história de lutas de libertação nacional, com vitórias e derrotas. Os povos que anseiam por autodeterminação podem e devem continuar a contestar os desenhos internos e externos dos Estados. Algumas questões são resolvidas com a criação de regiões autónomas ou entidades federadas. Outras passam mesmo pela independência. Mas nenhuma pode resultar da invasão de uma potência imperialista, seja ela qual for. O passo imediatamente anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia foi a farsa do reconhecimento da independência das autodenominadas repúblicas separatistas russófonas.

Condenar a invasão russa é evidente para quem reconhece a causa da emancipação nacional e vê na Federação Russa uma potência imperialista. Quem, perante a invasão russa, tem mais pressa em condenar outras potências imperialistas está a desconversar. Reconhecida a potência imperialista agressora e a necessidade da Ucrânia se defender, a classe trabalhadora dos vários países europeus tem mais questões a colocar-se. Como é que a classe trabalhadora e os povos europeus se livram quer do imperialismo da Rússia e quer do imperialismo dos EUA? Como é que a classe trabalhadora e os povos europeus se livram dos aparelhos imperialistas internos ou semi-internos como os tratados da Europa Fortaleza, da Europa da austeridade e da NATO? É que a Europa que nós queremos libertar é a Europa do futuro, a da cooperação, da solidariedade e do desenvolvimento. Dos impérios, só precisamos que nos deixem em paz!

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Notas:

1 A relação entre as origens nacionais e a segmentação laboral favoreceu este processo de racialização, mesmo considerando a vantagem social da pele branca dos europeus de leste. Para uma abordagem geral destas questões ver também: E. Peralta, M. Delaunay, B. Góis. "Continuidades (Pós-)Coloniais: Racismo, Desigualdade e Cidadania". Caderno MICAR, 7ªEdição da mostra internacional de cinema anti-racista. (Porto: SOS Racismo, 2020), 49-58.

2 No Luxemburgo, o facto de boa parte dos trabalhadores serem considerados estrangeiros, nomeadamente portuguesas e portugueses (a maior comunidade), existe um problema efetivo de direitos democráticos da classe trabalhadora. Ver Jessica Lopes, “Luxemburgo e a sua democracia minoritária”. in A Comuna 33 (Janeiro-Agosto 2015) 51-53.

3 F. Engels, “What have the working classes to do with Poland?/On Poland and Russia” in K. Marx, Karl Marx’s Political Writings vol 3: The First International and After, ed. D. Ferncach (London & New York: Verso, 2010), 377-388.

4 K. Marx & F. Engels, “For Poland”, in K. Marx, Karl Marx’s Political Writings vol 3: The First International and After, op. cit., 388-92.

5 F. Engels, “Speech by Friedrich Engels/Speeches on Poland (22 February 1848)” in K. Marx, Karl Marx’s Political Writings vol 1: The Revolutions of 1848, ed. D. Ferncach (London & New York: Verso, 2010), 105-8. 107. Ver também K. Marx & F. Engles, “To the Meeting in Geneva Held to Commemorate the 50th Anniversary of the Polish Revolution of 1830”, in K. Marx & F. Engels, Marx/Engels Collected Works vol. 24: Marx and Engels 1874-83 (Electric Book: Lawrence and Wishart, 2010), 343-345.

6 F. Figueiredo, "Lenine e o direito dos povos ao seu autogoverno". A Contradição 1 (outubro 2018) 98-106.

Sobre o/a autor(a)

Investigador. Mestre em Relações Internacionais. Doutorando em Antropologia. Ativista do coletivo feminista Por Todas Nós. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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