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A hipocrisia da crítica

A acusação que Luís Aguiar-Conraria faz ao Bloco de Esquerda, na sua última crónica do Expresso, é a de que tem “uma pulsão totalitária”, contudo disfarçada, não tem uma única alegação plausível e demonstrada.

Diz-se de Luís Aguiar-Conraria que não tem medo de dizer disparates e que dá a mão à palmatória. Vemos esses atributos e outros bem melhores em tudo o que é legível na internet. Como académico, só podemos apreciar estar no debate público e ter evitado a clausura da cátedra. Sou daqueles que, mau grado ser politicamente distante, medito em algumas das suas análises e disso tiro proveito porque as consciências não vivem isoladas.

Dito isto, que é de justiça equânime, a acusação que faz ao Bloco de Esquerda, na sua última crónica do Expresso, é a de que tem “uma pulsão totalitária”, contudo disfarçada, não tem uma única alegação plausível e demonstrada. O título, “Hipocrisia absoluta”, embora abandonado no texto porque se refere na sua quase totalidade ao PCP que elogia pela sua total transparência e compromissos internacionais indeferíveis, parece vagamente apontado ao Bloco de Esquerda. Apenas como atoarda destinada a caricaturar o que não se conhece ou se quer desfigurar. Seja como for, não abona de um crivo exigente.

Que carreia Aguiar-Conraria para justificar a sua conclusão? Que o Bloco de Esquerda apoiou Chávez da Venezuela e só se afastou quando a opinião pública internacional contestou o seu viés ditatorial. Devo recordar que o Bloco de Esquerda apoiou Chavéz depois de um golpe de estado falhado promovido de fora pelos Estados Unidos da América, apesar de Chávez ter sido eleito presidente em eleições incontestadas. Recordamos um comunicado de imprensa do governo português a apoiar o golpe de estado militar de abril de 2002, com a chancela de Durão Barroso, tentativa golpista esmagadoramente condenada nas Nações Unidas.

O Bloco de Esquerda nunca teve relações com os bolivarianos da Venezuela, ao contrário do PSD e PSD/Madeira, do CDS, e do PS de José Sócrates,alguns dos “amigos” ainda pontificam na política nacional. Ainda milita por aí Alberto João Jardim que invocou algumas ponchas a Chávez. No Bloco de Esquerda, nunca secundamos o regime de Maduro a quem sempre acusamos de corrupção endémica e de desvio antidemocrático. Isso não quer dizer que tenhamos de aceitar como boas as ingerências dos Estados Unidos. Será que Luís Aguiar-Conraria vai esculpir alguma opinião ao facto de o governo português ter reconhecido oficialmente outro presidente na Venezuela, que entretanto desapareceu, e negociar aquilo que interessa aos portugueses na Venezuela, a começar por apoios humanitários, com o presidente que não reconhece, um prodígio de Santos Silva, que aliás nunca, mesmo jamais esteve com a cooperação chavista.

Será talvez um arrojo demonstrar que, em mais de vinte anos, no Bloco defendemos os Direitos Humanos onde quer que fossem ofendidos, independentemente dos regimes, atitude única na Assembleia da República, onde os outros partidos só condenam essas violações quando se tratam de regimes que hostilizam. Nunca deixamos de censurar a política ditatorial da China ou da Rússia. Não fomos nós que abrimos garrafas de champanhe quando venderam a EDP à China e o mostraram no telejornal das 20 horas. Perguntem a Passos Coelho e a Paulo Portas. O mesmo governo que foi vender vistos gold para a máfia de Putin. Perguntem à turma do Turismo desse governo, com alguns políticos no ativo. Sobre o MPLA estamos conversados, eu próprio, de vez em quando sou brindado nos editoriais do Jornal de Angola.

O Bloco tem relações políticas com um partido russo que neste momento tem centenas de ativistas presos, o Movimento Socialista. Putin tem de ser derrotado na Ucrânia e na Rússia! A nossa relação com a Ucrânia não é de agora. Há mais de dez anos, enquanto relator da Comissão de Negócios Estrangeiros da Assembleia da República, recebi por várias vezes o embaixador da Ucrânia e instruí um pedido ao MNE para Portugal reconhecer o Holodomor como crime contra a Humanidade, relatório votado no parlamento. O embaixador teve a simpatia de se encontrar mais tarde comigo para me manifestar o público respeito pelo processo.

Isso também não quer dizer que tenha de se apreciar os grupos armados nazis que pululam pela Ucrânia ou sequer que se tenha de achar que tal facto é impeditivo das autoridades deterem o exercício da sua soberania integral em território reconhecido. Resta, ao que parece, a exorbitante exclamação de Aguiar-Conraria de que o Bloco ora é trotsquista, ora social-democrata. Que puzzle?!

Não me atrevo a polifacetar o pensamento de Aguiar-Conraria, mas encontraria o link de vários ismos… Quanto ao Bloco, é simples. Sempre reconhecemos os valores constitucionais do nosso regime democrático e os nossos ideais socialistas não entram em contradição com isso. O mesmo não se pode dizer de todos os partidos da direita em Portugal. O Bloco abrange várias posições filosóficas entre os seus membros. A questão não é sequer relevante porque o Bloco de Esquerda não tem uma ideologia oficial, nem trotskista nem outra coisa qualquer, mas um ideário socialista que atualiza face aos cursos mundiais, na exata medida dos seus princípios socialistas, feministas, ecologistas e antirracistas. Não sei se a Constituição é íngreme para muitos setores de pensamento. Mas deve ser livremente respeitada.

Ser a favor da dissolução da NATO, como prevê a Constituição Portuguesa é, em abono da verdade, uma ajuda à Paz. Isso não impede na visão constitucional a insurreição dos povos contra as ditaduras e o neocolonialismo, e muito menos a ajuda militar entre estados soberanos ou mecanismos de segurança mútua. Exatamente o que a pulsão totalitária de Trump não queria e diferente do engajamento anti-China que Biden quer. Mas talvez essa discussão mereça um debate a sério porque colide com a vida de todos. A crítica é bem-vinda, uma pressuposição é só isso e sai pior quando pretende apontar o dedo a uma moralidade duvidosa como a da hipocrisia. Valha-nos a ética que nos faz gregos desde a antiguidade.

Artigo publicado em expresso.pt a 4 de março de 2022

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
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