Déspotas e fantoches

porMiguel Guedes

26 de February 2022 - 11:17
PARTILHAR

Este é o fim do pós-guerra e o mais pesado início para a reconfiguração da nova ordem mundial que já se vislumbra, mas que ainda não tem vigência. A multipolaridade é um facto e uma nova bipolaridade entre blocos pode ser o reacender dos piores fantasmas.

O som do medo no choro de uma criança ucraniana, ao assistir à queda de um míssil bem próximo da sua casa, coloca-nos no nosso ponto de rebuçado-zen para a análise do conflito russo-ucraniano: estamos à distância, na comodidade do sofá, a bater no teclado ou a debitar no ecrã, onde todos somos geoestrategas políticos natos, produtores exímios de comentários tendencialmente racionais, bem munidos da mais completa informação histórico-militar. Quase parece ciência.

Este é o fim do pós-guerra e o mais pesado início para a reconfiguração da nova ordem mundial que já se vislumbra, mas que ainda não tem vigência. A multipolaridade é um facto e uma nova bipolaridade entre blocos pode ser o reacender dos piores fantasmas. Imaginar um bloco ocidental (constituído pelos EUA/UE) e um bloco China/Rússia (com o "wild card" da Coreia do Norte em suspensão equívoca) convoca os piores receios. Estejamos preparados para as lições que os próximos tempos nos darão sobre como toda a comunidade internacional, sem excepção, tem tratado a soberania de alguns países e as legítimas aspirações à autodeterminação, à independência ou à autonomia dos povos. Não há heróis nem impolutos. Os que se indignam (e bem) com o ataque russo não queimaram pestanas pelo reiterado incumprimento do Tratado de Minsk. Ignoraram todos os sinais e atropelos de ambas as partes. Desprezaram a História e a personalidade de um déspota e a irrelevância de um fantoche. Agora somos (quase) todos ucranianos e anti-imperialistas, imersos em soluções que não resistem à memória da invasão do Iraque, da anexação da Crimeia. E sabemos que, chegados aqui, a única via é dar algo para receber.

A importância de atacar a oligarquia russa no sistema financeiro é crucial. Em Portugal, façamos a nossa parte. Congelamento dos seus interesses e activos financeiros, interdição dos vistos gold para cidadãos russos e uma investigação séria aos que já foram atribuídos para que se saiba se foram atribuídos a cidadãos internacionalmente sancionados. Receber refugiados e acompanhar as famílias de ucranianos e luso-ucranianos que se encontram em Portugal. E contribuir, à escala internacional, para um princípio de solução que nunca poderá deixar de passar pelo compromisso claro de que a Ucrânia não integrará a NATO. Avançar, agora, é permitir um recuo.

Os planos de guerra são traçados com meses largos de estratégia e de preparação, o que não impediu Putin de atacar a Ucrânia em plena reunião do Conselho de Segurança da ONU, enquanto António Guterres lhe dirigia palavras emocionais para que desse "uma hipótese à paz". Durante as últimas semanas, só Biden nos disse - com clareza e todas as letras - o que iria mesmo suceder e o que estava iminente. A Alemanha recuou na abordagem ao Nord Stream2 e a União Europeia comportou-se com a força que não tem, acordando (pelo menos) para a prontidão de um pacote de sanções sério e que promete fazer mossa na oligarquia russa. Agora, somos todos espectadores racionais com análises, justificações e estudos detalhados sobre a realidade, mas que não resistem um segundo ao choro de uma criança ucraniana. Mais uma vez, os humanistas não acreditaram no que os homens são mesmo capazes de fazer.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 25 de fevereiro de 2022

Miguel Guedes
Sobre o/a autor(a)

Miguel Guedes

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
Termos relacionados: , Ucrânia