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Habitação: intervir no mercado, limitar preços abusivos
Perder uma casa é violento, não ter onde viver é violento, viver em sobrelotação é violento. Não saber se se consegue pagar a renda, a água, a luz, é uma crise que não se supera. Viver com humidade e mofo, frechas por onde entra o frio ou tetos que caem faz muito mal à saúde. Ter de usar um fogareiro para aquecer a casa é violento. Tanto que levou recentemente à morte de dois jovens em Rio Tinto, Gondomar.
Temos carências brutais a nível habitacional, crescem as construções não licenciadas para responder a carências habitacionais, crescem os números dos levantamentos da habitação indigna, cresce o número de pessoas que não consegue pagar para viver onde trabalha, que não aceita trabalhos porque não ganha para as rendas que vai pagar.
Ana Cordeiro Santos calcula, num artigo do Le Monde Diplomatique1, que a partir de 2013 os preços reais da habitação cresceram 51%, enquanto que os salários apenas cresceram 4%. No mesmo documento, comprova ainda que em 2019 as despesas com habitação representavam mais de 40% do rendimento de 26% dos arrendatários, enquanto que no caso dos proprietários apenas atingia 3% dos agregados. Esta questão é tão ou mais problemática se tivermos em conta que os proprietários não são penalizados com aumento de rendas nem de juros - pelo contrário, tendo em conta a política do Banco Central Europeu - como ainda têm os seus rendimentos a crescer fruto da valorização do património e das próprias rendas. Por fim, e se olharmos à taxa de sobrelotação estimada pelo INE, em 2020, esta rondava os 9% e penaliza sobretudo os territórios predominantemente urbanos, onde a taxa pode ultrapassar os dois dígitos e ainda, de forma desproporcional, o território do Algarve, em que a taxa de sobrelotação é de uns impressionantes 16,2%.
Neste panorama, o Governo continua a adiar as repostas. Executa ao terço os programas habitacionais e faz do Plano de Recuperação e Resiliência o alfa e ómega da resposta à crise habitacional. Em 2018 as carências já não estavam rigorosamente aferidas, em 2019 havia um aumento em mais de 70%, conforme revelou a presidente do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana em audição na Assembleia da República. Temos, identificados para a Bolsa de Alojamento Urgente – com meros 2.000 fogos previstos - mais de 100 mil migrantes com necessidades permanentes ou sazonais segundo o que vem inscrito no Plano de Recuperação e Resiliência. E a resposta continua a ser a mesma - através do 1º Direito, 26 mil. Eventualmente 7.000 – já chegaram a ser 15.000 - casas em renda acessível e 2.000 em bolsa de alojamento urgente. E só.
Precisamos de um programa público mais exigente e de recuperar edificado público. O Bloco de Esquerda propôs que os edifícios colocados para alienação em 2019 pelo Ministério da Defesa, através da Lei das Infraestruturas militares, e que tivessem aptidão habitacional ficassem afetos ao Ministério das Infraestruturas e Habitação. Com esta proposta, 3 edifícios no Porto, 3 em Lisboa e 1 em Oeiras darão lugar a 1379 novas casas. Precisamos ainda de uma lei do arrendamento que de facto regule os contratos de arrendamento habitacional, que dificulte o despejo em situações de especulação, que renove automaticamente os contratos, e que garanta que as pessoas se mantém nas suas casas se pagarem os valores justos. Em Berlim, por exemplo, o tempo do contrato é indeterminado e só pode ser rescindido em condições muito concretas: casa para si ou família, incumprimento pelo inquilino do contrato, e desvantagens econômicas grandes - não se pode considerar o aumento de renda de forma astronómica nem a mudança de valor para arrendar a outro inquilino como perda económica. Em França, os contratos são por um mínimo de 3 anos e automaticamente renováveis. As razões para rescindir um contrato também não podem ser levianas. Com uma lei assim, a Apollo ou a Albatross não poderiam ter facilmente despejado os inquilinos das casas geridas pela Fidelidade ou Norfin.
E por isto há muito a fazer, tal como outros países têm feito. E uma das questões que o Bloco coloca em cima da mesa é a limitação do valor máximo das rendas, uma limitação que trave os valores especulativos. Esta política existe em vários países2: 16 países na Europa com rendas reguladas em 2ª Geração - limita preço no primeiro contrato e aumentos - ou 3ª geração - limita apenas aumentos entre renovações. Nestes países as quotas de mercado de arrendamento privado situam-se entre os 8% e os 52%. Nos 17 países de mercado de arrendamento privado totalmente liberalizado as quotas de arrendamento estão entre 1,7% e 19,8%. Fica evidente a diferença: promover o arrendamento é isto.
Temos então de desconstruir os mitos sobre a limitação das rendas. Quando se fala em limitação ao valor das rendas, não se fala em congelamento. Existem já tabelas de limitação de rendas em Portugal. O tabelamento do Programa Porta 65 aplica uma limitação de renda por concelho para que se possa aceder ao programa. O arrendamento acessível promovido pelo estado central também (20% menos que o aplicado no mercado livre). A renda condicionada aplica-se a habitação pública que tenha sido vendida aos seus moradores ou ainda a habitação construída por cooperativas e associações com apoio de fundos públicos e limita os valores de arrendamento a 6,7% do Valor Patrimonial do imóvel. Como se vê já existem algumas formas de limitar os valores. Então porque não são generalizados?
Depois existe a ideia de que não existe limitação de rendas em outros países. Não é verdade. Não só existe, como vários países - Irlanda, Escócia, Alemanha, Estado Espanhol - têm vindo a intensificar medidas desde 2015. Em Berlim, os alugueres abusivos são penalizadas pelo código penal económico com multas que podem ir até 50.000 euros. Para calcular o valor abusivo é feito um tabelamento do preço de mercado e uma renda abusiva é 20% superior ao índice de preços de mercado. Existe ainda controlo de rendas e de aumentos na Dinamarca, França, Holanda, Suécia, Irlanda e Áustria. O simples controlo de aumentos existe em outros 10 países.
Outra ideia que se ouve com frequência é de que a regulação diminui a qualidade e a oferta de edificado em arrendamento. A questão que fica é se desde 2012 existe assim tanta reabilitação de edificado para arrendamento habitacional. É também importante ter em conta que não existiram fundos comunitários para reabilitação de habitação, mas existiram apoios para reabilitação turística, T1 e T0 em Alojamento Local e unidades hoteleiras que canalizaram respostas habitacionais para alojamento temporário a turistas. Ainda assim, o Censos 2021 dá conta da subida do número de contratos entre 2011 e 2021 na ordem dos 120.000. Mas fica uma outra pergunta, quantos destes serão contratos de curta duração? Quantos dos cerca de menos de 10.000 fogos vagos foram de facto colocados para suprir as necessidades habitacionais? Não sabemos, e fica um número ainda muito elevado de alojamentos habitacionais vagos: 723.214.
Por fim, levanta-se sempre a questão da limitação do lucro na propriedade privada. Se fosse para cumprir a ideia de valor de uso e da função social da habitação, essa limitação seria óbvia: deixar o edificado ao abandono é uma atitude contrária ao valor de uso inscrito na Lei de Bases. Mas, para além disso, existe o facto de uma grande parte do edificado em Portugal ter sido construído com apoios públicos. Apoios à construção ou o crédito bonificado foram as principais políticas para garantir habitação, mas principalmente construção, em Portugal. Só em crédito bonificado entre 1987 e 2011 foram canalizados do orçamento de estado mais de 7.000 milhões de euros – diretos para a banca.
Exige-se coragem e intervenção no mercado, uma lei do arrendamento forte, penalizar a ociosidade do edificado e limitar o investimento estrangeiro, mas temos mesmo - mesmo - de intervir no mercado e limitar as rendas a valores possíveis de serem pagos no nosso país. Este tem de ser um compromisso para os próximos anos. Sem isto os milhões passam a tostões.
Notas:
1 Ana Cordeiro Santos. Sociedade de proprietários e de bem-estar patrimonial: a propriedade no centro d política. Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa. pp. 6-7 , dezembro 2021.
2 Hanna Kettunen & Hannu Ruonavaara (2020): Rent regulation in 21st century Europe. Comparative perspectives, Housing Studies, DOI: 10.1080/02673037.2020.1769564
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