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2021: o Capitaloceno instala-se

A crise climática já não é uma previsão futura mas uma sucessão presente de catástrofes esperadas e cada vez mais devastadoras, em todos os territórios, enquanto o aparelho económico, político e cultural do capitalismo revela que nem sequer tem um plano maquiavélico.

No ano que finda vimos algumas das consequências da crise climática devastarem países ricos no Hemisfério Norte, sem que tal tenha produzido qualquer mudança política, apesar de ser claro que um novo clima se instala. As instituições mantêm-se como máquinas de produzir negócios e a COP26 em Glasgow transformou-se no espaço primordial para projectar as novas formas de acumulação de capital, usando como desculpa a crise climática. Foi também o ano em que se inaugurou o primeiro capítulo das viagens idiotas ao espaço, culminando com a coroação de Elon Musk como pessoa do ano pela Time. O capitaloceno está em plena instalação.

2021 ficará provavelmente entre os sete anos mais quentes desde que há registos, mantendo-se a sucessão de recordes globais de temperatura que se confundem com os anos em que acabámos de viver (dos dez anos mais quentes desde que há registos, nenhum foi antes de 2000 e, de antes desta década, só sobra 2005 no topo). Os oceanos estão mais ácidos do que alguma vez estiveram nos últimos 26 mil anos, o que significa que a sua capacidade de absorver dióxido de carbono da atmosfera está a descer, assim como a dificuldade de muitos dos seres que aí habitam de proliferarem. Pesquisas revelam que a Circulação Meridional do Atlântico, frequentemente chamada de Corrente do Golfo, que distribuiu energia das zonas mais quentes do oceano em direcção à latitudes mais altas, está totalmente desestabilizada, aproximando-se do colapso, com as velocidades mais lentas dos últimos 1600 anos, indicando a proximidade de uma paralisação. A concentração de dióxido de carbono na atmosfera também está nos níveis mais altos alguma vez registados, sem paralelo nos últimos 3 milhões de anos (a nossa espécie existe há 300 mil).

As emissões globais de gases com efeito de estufa aumentaram drasticamente (cerca de 5% em relação a 2020, o que fará com que os níveis finais estejam próximos dos de 2019). As emissões na China deverão aumentar cerca de 4% em relação a 2020, as da Índia cerca de 13%, a União Europeia e os Estados Unidos cerca de 8%. O grosso de toda a “recuperação económica” que existiu foi baseada em petróleo, gás e carvão. O carvão viu na verdade a sua maior subida anual de sempre, com mais de 9% (bem distribuída entre China, Índia, União Europeia e Estados Unidos). O capitalismo global continua absolutamente viciado em combustíveis fósseis e sem qualquer plano credível para deixar de o estar. O plano chama-se colapso climático e arrasta-nos para a catástrofe.

Catástrofe foi uma palavra frequente em 2021, embora a imprensa teime em continuar a não associar directamente o enorme aumento de fenómenos climáticos extremos à crise climática, acabando por retratá-los reiteradamente como “desastres naturais”, perdendo-se no debate sobre a logística assistencial e os impactos financeiros, evitando sempre abordar a origem inequívoca desta crise. Uma diferença relevante do ano foi a maior incidência de catástrofes climáticas no Norte Global, afectando mais directamente os países historicamente responsáveis pela crise climática. O Sul continuou, no entanto, a ser massacrado.

O início de 2021 viu a capital espanhola coberta de neve, num nevão que ocorre a cada 100 anos, provocado pela tempestade tropical Filomena. Mesmo um país rico e com uma enorme infraestrutura material e social os efeitos foram severos, com estradas cortadas durante duas a três semanas, os transportes públicos quase todos encerrados, parques e jardins severamente destruídos, inúmeros telhados colapsados e centenas de milhares de pessoas presas nas suas casas sem qualquer capacidade de movimentação durante mais um pico de Covid-19. O annus horribilis de Madagascar começou este mês, com a passagem da tempestade tropical Eloise seguida de uma monção particularmente forte no mês seguinte, com várias aldeias e casas inundadas e destruídas.

Em Fevereiro, um colapso do glaciar Nanda Devi, na Índia, levou a um tsunami fluvial que rompeu a barragem de Dhauliganga, matando mais de 80 pessoas. Ondas de frio nos Estados Unidos levam a cortes de electricidade a mais de 10 milhões de pessoas, em particular no Texas e no Nebraska. As temperaturas chegam a estar 40ºC abaixo do normal para a época e quase 200 pessoas morreram. No Canadá também se bateram recordes mínimos de temperatura. Na América do Sul ocorreu a maior seca dos últimos 90 anos. Cheias em Tanger e Tetouan, Marrocos, mataram 50 pessoas no centro da cidade.

Cheias sucessivas no Quénia levaram à destruição de colheitas e a várias mortes durante toda a Primavera. Em Março, as tempestades de areia na China, associando pó, calor e poluição, tornaram Pequim e a maior parte da Mongólia lugares intoxicantes ou mortais para quem estivesse nas ruas sob os céus laranja sem máscaras e óculos de protecção. Em Maio, o ciclone Tuaktae matou pelo menos 150 pessoas na Índia. Na Rússia, os meses de Maio a Agosto foram muito quentes, com o verão de 2021 a bater o recorde de mais quente na história do país, com ondas de calor e incêndios florestais devastadores na Sibéria. Em Hong Kong, a precipitação durante os primeiros cinco meses foi a mais baixa desde que há registos, em 1884.

O Verão (no Hemisfério Norte) de 2021 foi muito quente. Na Líbia, mais de 100 pessoas morreram numa onda de calor em Junho, enquanto nos antípodas a Nova Zelândia batia recordes do inverno mais quente de sempre, 1.32ºC acima da temperatura média 1981-2010. Na Chéquia, o maior tornado de sempre matou seis pessoas em Junho. Julho de 2021 foi o mês de Julho mais quente alguma vez registado. O nordeste americano viu sucessivos recordes de temperatura ser batidos (mais de 100 no Canadá), incluindo Lytton, com 49,6ºC na Columbia Britânica, numa onda de calor que derreteu o asfalto, destrui as redes eléctricas e matou centenas de pessoas, seguida de devastadores incêndios florestais que destruíram a cidade. Nos Estados Unidos morreram mais de 800 pessoas nesta onda de calor, que bateu o recorde de temperatura no Vale da Morte, com 54,4ºC. O maior incêndio florestal da história da Califórnia começou em Julho e só terminou em Outubro, o incêndio de Dixie, que consumiu 390 mil hectares de floresta e matos (e aldeias e cidades). O furacão Ida foi o segundo furacão mais forte a chegar a terra nos Estados Unidos desde o Katrina, inundando partes do Louisina, mas também de Cuba. Morreram mais de 100 pessoas. No centro da Europa, cheias rápidas inundaram partes da Alemanha (onde 183 pessoas morreram), destruindo casas e pontes, cortando a electricidade e a água durante vários dias, tal como ocorreu na Áustria, na Bélgica, no Luxemburgo, na Lituânia, na Croácia e em Itália. No mesmo mês, cheias mataram mais de 200 pessoas no Paquistão e 300 em Henan, na China. Foi ainda em Julho que se viram as impressionantes imagens do mar em chamas em pleno Golfo do México, devido a mais um grave acidente numa plataforma petrolífera.

Incêndios florestais devastaram a Grécia e a Turquia no final do Verão e em Outubro um furacão no Mediterrâneo, o Apolo, entrou terra adentro na Sicília. Nesta altura a fome em Madagascar, associando pobreza extrema a uma seca prolongada, atingiu mais de um milhão de pessoas.

Em Dezembro, um conjunto de tornados fora de época atravessou vários estados dos Estados Unidos – Arkansas, Missouri, Illinois, Tennessee e Kentucky – percorrendo centenas de quilómetros e matando pelo menos 90 pessoas. O final do ano viu ainda o supertufão Rai obrigar mais de 400 mil pessoas a abandonarem as suas casas nas Filipinas, com pelo menos 375 mortes. Também este mês tornou-se pública a notícia de que o Glaciar Thwaites, na Antártida, também chamado de Glaciar do Fim do Mundo, está a soltar-se mais rapidamente com o aquecimento dos oceanos, aumentando as fracturas no gelo e ameaçando colapsar não daqui a décadas, mas durante esta década, o que levaria por si só a um aumento do nível médio do mar global em pelo menos 60 cm de uma só vez.

Perante este novo clima que já nada esconde, o sistema económico e político que domina o mundo deu todas as garantias de que nada substantivo seria feito. A COP26 em Glasgow foi o apogeu disto, a primeira COP que afirma sem hesitações a entrada no Capitaloceno, uma despudorada feira dos recursos naturais dos países mais pobres, onde alguns dos principais actores do capitalismo global tentaram organizar um novo arranjo de poder que permita mais expansão económica, apostando na crise climática como ferramenta para abrir novas fronteiras de exploração e acumulação de capital. A neutralidade de carbono, o comércio de emissões, os offsets de carbono, a intensificação da mineração, todos alimentam novas narrativas para permitir uma só coisa: fazer uma nova divisão dos países mais pobres como locais de extracção, minas abertas para manter o status quo.

Não há uma separação entre o capitalismo como modo de produção e o capitalismo como mundivisão. Para compensar a crise produtiva associada à Covid, é necessário aprofundar a alienação para, em plena maior crise que a Humanidade já viveu (não o Covid, a crise climática e ambiental), se expandirem actividades como as que lhe deram origem. Durante a COP foi revelado que mais de 800 novos furos de petróleo e gás estavam programados em mais de 70 países até ao final de 2022. Imediatamente terminada a COP, a administração de Joe Biden realizou o maior leilão de poços de petróleo e gás no Golfo do México alguma vez feito. No campeonato da alienação pura, explodiram as criptomoedas, um produto 100% especulativo, sem qualquer correspondente físico, mas com enorme impacto em consumo de energia. É uma das novas facetas do anarcocapitalismo que vai procurando novas ferramentas de expropriação de riqueza real e acumulação de capital, entrando em colisão com os sistemas privados e públicos da banca e da finança. Só a Bitcoin emite mais dióxido de carbono do que a Nova Zelândia. A bolha as criptomoedas é uma loucura como a crise das tulipas na Holanda, no século XVII, só que neste caso nem tulipas há.

Como corolário da faceta alienada do Capitaloceno, vários multimilionários montaram naves espaciais em formato de pénis gigantes e foram ao espaço passar 15 minutos para provarem que têm dinheiro para isso. A fechar o ano, a Time deu a Elon Musk, cujo grande projeto é colonizar Marte, o prémio de homem do ano. Musk é vendido como self-made man, apesar da fortuna das minas de esmeraldas do seu pai na Zambia. Musk é um dos maiores críticos dos planos públicos para travar as emissões (incluindo, claro, o plano de Joe Biden para um plano massivo de investimento público – que está a ser bloqueado pelos próprios membros do seu partido). Para o bilionário, a missão é fazer dinheiro, e não quer concorrência, pelo que travar o colapso poderia ser, quanto muito, um efeito colateral. A imprensa aplaudiu todos estes episódios grotescos e deu-lhes toda a atenção e cada minuto de tempo que um bom patrocinador merece.

O Capitaloceno instala-se. A crise climática já não é uma previsão futura mas uma sucessão presente de catástrofes esperadas e cada vez mais devastadoras, em todos os territórios, enquanto o aparelho económico, político e cultural do capitalismo revela que nem sequer tem um plano maquiavélico, mas principalmente um plano estúpido, fruto da própria alienação das elites do status quo. Pretendem colapsar-nos por inércia. Continuar a jogar o seu jogo só pode garantir o colapso.

Artigo publicado em expresso.pt a 28 de dezembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Investigador em Alterações Climáticas. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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