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Ou as heranças ou o património?

Ao defender um imposto sobre as heranças ou o agravamento da tributação sobre o imobiliário, a OCDE propõe elevar o tributo aplicado ao património, que no nosso país é dos mais baixos da Europa.

A OCDE, que se orgulha de um tenaz talibanismo sobre a flexibilização dos contratos laborais, sendo a guardiã das normas neoliberais contra o trabalho (o “ralhete” a que me referi na última semana), surpreendeu os seus devotos com a proposta de aumento de impostos em Portugal. E, se ainda ficasse por aí, suspirariam algumas almas e esperariam que a alucinação passasse. Mas a OCDE fez uma lista maior de recomendações. Olhando para a Saúde, propõe mais investimento, sobretudo nos cuidados paliativos e intensivos e na saúde mental, além de melhores condições para os profissionais — onde é que já ouvimos isso. E não fica por aqui: acrescenta que é preciso melhorar o acesso ao subsídio de desemprego e subir as prestações sociais, depois de ter registado que Portugal é um dos países que impõem maior penalização das pensões antecipadas. E ainda há mais, a crítica ao facilitismo quanto ao branqueamento de capitais por via do imobiliário e depois, para surpresa de muitos, a proposta de aumentar os impostos sobre a poluição e sobre o imobiliário (ou sobre a herança).

A OCDE propõe ajustamentos que sejam reparadores da crise orçamental e das perturbações sociais que quer impor com a outra mão

Deixe-se de lado, por agora, a leveza com que instituições internacionais receitam medidas que cabem à soberania dos países, e concentremo-nos nas ideias sugeridas. A OCDE é um retrato da perplexidade neoliberal, quer que tudo continue na mesma (as relações de trabalho), mas sabe que assim não pode ser. Por isso, propõe ajustamentos que sejam reparadores da crise orçamental e das perturbações sociais que quer impor com a outra mão. Esta duplicidade tornou-se um refrão: em abril do ano passado, o “Financial Times” escrevia, num editorial incendiário: “Os governos devem aceitar uma função mais ativa na economia. Devem considerar os serviços públicos como um investimento e não como um gasto, e procurar formas de tornar o mercado de trabalho menos inseguro. A redistribuição [do rendimento] deve voltar a estar em cima da mesa; os privilégios dos ricos devem ser questionados.”

Uma das sugestões da OCDE vai precisamente neste sentido sugerido pelo jornal, de “questionar” os “privilégios dos ricos”, linguagem pouco comum nestas esferas. Ao defender um imposto sobre as heranças (que não existe em Portugal) ou o agravamento da tributação sobre o imobiliário propõe elevar o tributo aplicado ao património, que no nosso país é dos mais baixos da Europa. A única modificação aprovada nos anos recentes nesse sentido foi o chamado ‘imposto Mortágua’ sobre imobiliário de luxo, que agora rende €300 milhões, aplicados na Segurança Social — e foi o único contributo recente para a sua sustentabilidade. Vai ser curioso saber o que se dirá nestas eleições acerca desse imposto e de medidas para reduzir os “privilégios dos ricos”.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 18 de dezembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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