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Há qualquer coisa estranha no ar?

Isto de castigar os imigrantes ou de prometer a bandeira nacional contra Bruxelas vem com a função. Rui Rio repetiu nos Açores o refrão do ataque à subsidiodependência.

Uma reportagem do “The Guardian” descreveu o ambiente eufórico num restaurante faustoso de Paris, em que os apoiantes de Michel Barnier, que foi o negociador do ‘Brexit’ pela União Europeia, festejaram a sua candidatura na disputa interna para escolher o candidato presidencial de Les Républicains. Barnier tornou-se o principal concorrente neste partido, não sem alguma surpresa — nunca ocupara um lugar tão central ao longo de décadas de carreira. No entanto, as alternativas têm sido desprezadas pelas sondagens, que dão aos dois possíveis candidatos da extrema-direita uma forte supremacia sobre os mandarins neogaullistas que se perfilaram até agora. E surge Barnier.

Explica ele que foi na véspera de Natal, logo depois da assinatura do acordo com o Reino Unido, que se sentiu inundado de saudades da França e que percebeu que “tinha de ser útil”, ou seja, ser candidato para se opor a Macron em nome da direita tradicional. A candura desta apresentação, misturando o espírito do Pai Natal com o serviço à pátria, é digna de manual, mas não acrescenta muito. No entanto, o discurso não se ficou por aí, e Barnier explicou o seu programa: “Há duas condições para melhorar as coisas em França: segurança e imigração.” Vive-se um perigo, a divisão, “há tensão e risco de confrontação, temos de restaurar a calma e sossego na vida das pessoas. Para isso, precisamos de um eletrochoque em termos de segurança e imigração”. E o eletrochoque, a palavra não é de somenos, será uma moratória de cinco anos para a entrada de imigrantes não-europeus, excluindo também quem venha em reagrupamento familiar, e, mais, que a França deve recuperar a sua soberania nos tribunais europeus. Está o ingrediente da extrema-direita, fechar a fronteira, e está um regresso ao gaullismo, a soberania do hexágono, que agora seria surpreendentemente imposta pelos próprios tribunais europeus. A mistura é explosiva, o tal choque elétrico, mas implausível, os tribunais europeus desprezam as conveniências de uma campanha eleitoral, e surpreendente, quem diria que o elegante Barnier usaria o muro contra os imigrantes como mote. No melhor pano cai o trumpismo.

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A quem interprete esta aparente viragem como um sinal de perda de europeísmo ou de princípios recomendo alguma calma. Isto de castigar os imigrantes ou de prometer a bandeira nacional contra Bruxelas vem com a função. Pela mesma razão, e como quem não quer a coisa, Rui Rio repetiu nos Açores o refrão do ataque à subsidiodependência para agradar a todos os partidos do Governo Regional. É fácil insultar os pobres, é sempre o caminho mais confortável.

Este mecanismo de culpabilização tem pergaminhos. David Pontes, no “Público”, fez um dia o seguinte inventário desta fraseologia: “o criminoso é sempre o coitadinho”; “as forças de segurança, em vez de serem apoiadas, são desautorizadas”; “já não somos um país de brandos costumes, por isso não podemos ser um país de leis brandas”; o RSI é um “financiamento à preguiça”; “anda-se de arma e RSI na mão”; “os ciganos do rendimento mínimo garantido”; “é óbvio que há uma relação entre imigração descontrolada e aumento de fenómenos de criminalidade”. Nada disto é de Ventura (nem de Barnier). É tudo de Paulo Portas, e já lá estava o discurso inteiro. Ou seja, basta a ocasião para fazer o barão: em precisando, qualquer líder de direita atravessa o espelho. Foi assim no PREC, para quem não se lembra, com incêndios de sedes e atentados à mistura, é agora assim quando os mais cavalheirescos dos chefes da direita soltam o seu animal feroz. Barnier não surpreende, portanto. É assim que as coisas são. O que há de estranho nestes discursos e nestes programas é só a confirmação do que poderia ser chamada a Lei Barnier: quando disputa com a extrema-direita, ninguém segura o bom candidato da direita, será mais agressivo do que o concorrente.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 27 de novembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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