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Bloqueio da Refinaria de Sines – dez notas

A refinaria é a infraestrutura com mais emissões de gases com efeito de estufa do país, sendo por isso naturalmente uma estrutura cujo encerramento ou transformação faz parte de planos mínimos para travar os piores cenários da crise climática.

Na semana passada o Climáximo, articulado no Acordo de Glasgow, bloqueou a refinaria de Sines da Galp, durante a maior parte da quinta-feira. A refinaria é a infraestrutura com mais emissões de gases com efeito de estufa do país, sendo por isso naturalmente uma estrutura cujo encerramento ou transformação faz parte de planos mínimos para travar os piores cenários da crise climática. A acção reivindicou um processo social e político para este encerramento, liderado por quem trabalha na refinaria, um processo transformativo cujo objectivo é a transição justa para a comunidade, para trabalhadores e a sociedade em geral. Apesar de algum ruído à volta do assunto, principalmente dinamizado pela Galp e pelo governo, levanto dez notas relativas à acção para clarificá-la.

1. A nossa casa está a arder. As emissões de gases com efeito de estufa em 2021 irão novamente retomar a trajectória ascendente que tinha sido interrompida pela crise do covid-19. Não houve qualquer lição com a crise pandémica e seguramente que não houve qualquer lição que tivesse reflexão na política climática. Cada molécula de dióxido de carbono ou metano colocada na atmosfera ficará lá em cima durante décadas a séculos, e todas absorverão mais calor e tornarão o planeta mais quente. A concentração actual de dióxido de carbono na atmosfera é a maior pelo menos há 3 milhões de anos. A nossa espécie existe no máximo há 300 mil.

2. O capitalismo global vai deixar a casa arder. Não tem nenhum plano que não seja este. Apesar de reconhecer a existência de alterações climáticas e sua origem, apesar de saber da necessidade de cortar 50% das emissões até 2030, pretende aumentá-las! A governança global pela ONU já só se dedica à promoção de negócios verdes sob a égide de acção climática, enquanto os projectos de expansão de combustíveis fósseis recebem aval e financiamento dos vários braços económicos e políticos da elite global. Durante a última cimeira do clima foram expostos mais centenas de novos poços de petróleo e gás em todo o mundo, no relatório Drill Baby Drill. Terminada a cimeira, a administração Biden realizou o maior leilão de blocos para exploração de petróleo e gás no golfo do México de sempre. O plano do capitalismo global é deixar a casa arder.

3. Uma parte das empresas compreende que há novas oportunidades de financiamento, linhas de crédito, fundos públicos e apoio por parte da opinião pública para fazer negócios que não são abastecidos por petróleo, gás e carvão. Como o seu negócio é fazer lucro, aproveitam todas as oportunidades.

4. Não está a acontecer nenhuma transição na matriz energética global. Existe a entrada de nova capacidade de produção a partir de energias renováveis e de combustíveis fósseis – petróleo, gás e carvão. As energias renováveis não retiram dióxido de carbono e metano da atmosfera nem anulam o efeito dessas moléculas. As renováveis não estão a substituir as fósseis, que continuam a aumentar e continuam a aumentar a concentração de dióxido de carbono na atmosfera.

5. Seguramente que não está a acontecer nenhuma transição justa. O conceito de Transição Justa foi criado no seio do mundo sindical, em particular do mundo da indústria pesada, e tem que ver com os impactos óbvios que qualquer transformação produtiva tem nas comunidades construídas à volta dos grandes centros industriais. Uma Transição Justa coloca questões como emprego, qualidade de vida e rendimento de quem trabalha nos sectores mais poluentes como critérios prioritários de um processo de transformação que, muito mais que técnico, é político e social. O objectivo desta transformação é travar os piores cenários da crise climática e construir um mundo justo. Apesar de até existir um fundo europeu com esse nome, o que está a acontecer é a mobilização de fundos públicos para garantir justiça para acionistas e apoio com dinheiro público para a garantia da estabilidade das grandes empresas privadas e de um mínimo de paz social. Transição justa, em capitalismo, significa remunerar e garantir a manutenção do interesse dos investidores das petrolíferas e empresas fósseis e afins. Em capitalismo, justiça é justiça para o capital, nesta como em qualquer situação.

6. O capitalismo europeu olha para Portugal como uma periferia, lugar que não compita com o centro, uma estância de férias ou um local de extracção barata de recursos e mão-de-obra. Os grandes investimentos em Portugal são sempre isto e as transformações também. Os capitalistas portugueses estão de acordo com isto, porque não têm força para fazer diferente no contexto europeu e se acomodam aqui, investindo noutros locais. As empresas fósseis em Portugal podem esconder os seus investimento fósseis noutros países e ajudar a vender a aparência de descarbonização tanto em Portugal como na União Europeia, que lucra com essa aparência.

7. A refinaria de Sines deve ser encerrada ou profundamente transformada, como devem ser várias outras infraestruturas industriais emissoras em Portugal, esta década. O inventário de emissões desagregadas de Portugal mostra quais as principais fontes e futuros projectos cuja manutenção é a contribuição directa de Portugal para ultrapassar até as metas do Acordo de Paris. O plano desta elite é deixar a casa arder connosco (e consigo) dentro, é deixar a maior parte destas infraestruturas intocadas e avançar com novos projectos que aumentariam as emissões. No entanto, Portugal deve cortar 75% das suas emissões até 2030, em relação a 2018, o que significa que a maior parte da transição tem de começar a acontecer agora.

8. Analisar a resposta à crise climática a partir de uma perspectiva de business-as-usual do capitalismo é inútil. A crise climática vai destruir o business-as-usual. A competitividade entre os países não vai ser um critério político para avaliar nada, especialmente para o futuro da sociedade. A substituição de produtos por outros importados só é possível dentro de um quadro de normalidade capitalista. Esse quadro é irrealista. Invocar o estado actual das coisas como motivo justificativo para adiar uma mudança de fundo não é realismo, é idealismo, é a rejeição da realidade material. Ou mudamos quase tudo acerca da nossa sociedade esta década ou um clima inclemente mudará tudo por nós e contra nós. A civilização humana não terá as suas bases materiais garantidas se não forem travados os piores cenários das alterações climáticas, que são cada vez mais os mais plausíveis.

9. Os capitalistas tratarão deste assunto como tratam de qualquer outro assunto: procurando lucrar. Os capitalistas fecharão as infraestruturas quando elas não derem dinheiro ou quando lhes pagarem para isso. Ignorarão sempre quem trabalha. Não é defeito, é feitio e é a única coisa expectável. O que significa que a refinaria de Sines, num estado “normal” das coisas, será encerrada quando capitalistas o decidirem. A acção de dia 18, que levou mais de 100 pessoas de todo o país (sim, de autocarro, porque os transportes públicos para chegar a Sines e ainda mais à refinaria só obedecem a critérios de lucro e portanto poucos chegam) a bloquear a refinaria, pretendeu romper a normalidade e abrir um debate público: se este processo for liderado por capitalistas – e sê-lo-á sempre que não houver uma acção política completamente intencional em sentido contrário – o resultado será injustiça social e despedimentos em massa.

10. Um projecto social e político para o conjunto da sociedade, fora do quadro do capitalismo, é aquilo que se exige das gerações hoje vivas e é a tarefa principal das organizações sociais e políticas que contemplam a ideia de um futuro. É o que quem bloqueou Sines exige de si mesmo.

Artigo publicado em expresso.pt a 26 de novembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Investigador em Alterações Climáticas. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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