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De olho em ti

Conhecer a verdade da violência contra agentes policiais e da violência policial é cada vez mais uma exigência da democracia. Mas essa exigência não pode ser satisfeita mistificando neutralidades que não existem e pondo em causa imperativos de salvaguarda dos direitos de privacidade pessoal.

A pulsão videovigilante está aí. No espaço público com gente, nas esquinas dos centros desertificados das cidades, nas empresas, o óculo vigilante tornou-se uma banalidade e uma panaceia. E, mais que isso, uma demonstração inquietante da facilidade de prescindir de direitos essenciais de privacidade em nome de uma segurança hipotética. O debate sobre videovigilância é um debate sobre liberdades e sobre o imperativo da proporcionalidade dos limites a essas liberdades. É um debate sobre até ponde estamos dispostos a ir na contração da nossa privacidade no combate à criminalidade. É um debate sobre a fronteira absolutamente essencial entre o Estado das liberdades e o Estado policial.

O velho “arco da governação” aprovou legislação que contempla um recurso indiscriminado à videovigilância pelas forças de segurança. Sobra em câmaras o que escasseia em meios humanos e em condições dignas de trabalho das polícias. Dos suportes fixos para as câmaras passamos agora à sua incrustação nas fardas policiais. “Para saber a verdade”, dizem-nos. “Ganham todos”, asseguram-nos. Indiferentes às lesões indisfarçáveis aos direitos de privacidade que um parecer verdadeiramente arrasador da Comissão Nacional de Proteção de Dados pôs em evidência.

Erra quem parte para este debate com a tese, meio ingénua meio cínica, de que a tecnologia é neutra. Não é. A videovigilância – seja com suporte fixo, seja sobretudo com bodycams – é um meio de visibilizar e de invisibilizar, um meio que, por isso, não dispensa interpretações nem previne enviesamentos determinados por pré-juízos. Há muito que, nas ciências da comunicação, está consolidada a noção de “camera perspective bias”, ou seja, que quando vemos um vídeo que mostra uma realidade vista pelos olhos de quem filma, tendemos a adotar uma interpretação do que é mostrado favorável a essa pessoa. Enviesamento, portanto.

O que a webcam do agente policial mostra não é a realidade, é somente a realidade que foi filmada, tão limitada e descontextualizada como qualquer outra visão parcelar da realidade. O que se mostra e o que não se mostra, o ângulo com que se mostra, o som que é captado e o que não é captado, o tempo que se filma e o que é preliminar ou posterior e não é filmado – tudo são seleções, tudo são escolhas, tudo são focagens e truncagens.

Conhecer a verdade da violência contra agentes policiais e da violência policial é cada vez mais uma exigência da democracia. Mas essa exigência não pode ser satisfeita mistificando neutralidades que não existem e pondo em causa imperativos de salvaguarda dos direitos de privacidade pessoal.

Artigo publicado no diário “As Beiras” a 23 de novembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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