Sobre a existência de racismo estrutural e sistémico em Portugal Maria Gil e Piménio Ferreira são perentórios: “óbvio que sim”.
“Desde há 500 anos, ou mais. E o racismo estrutural e institucional funciona como uma lente que condiciona aquilo que tu vês”, explica Piménio Ferreira.
Maria Gil tem exatamente a mesma perceção: “A nossa história e a nossa atualidade política revelam exatamente isso. Não depende da minha afirmação. É óbvio que sim”.
E como é que o racismo se manifesta nos dias de hoje?
“Basta olhares para todos os índices que são públicos sobre desigualdade racial. Os ciganos não podem escolher onde viver. Falamos de uma taxa que supera os 80%”, aponta Piménio.
Em termos do setor da justiça, o ativista refere que “as pessoas ciganas conseguem ter penas 10 a 15, às vezes 20 vezes, superiores às de uma pessoa branca, quando esta não é absolvida”.
“Temos uma lei que descriminaliza o racismo. Insistem em dizer o que é o racismo, o que é que não é racismo, e como é que ele deve ou não ser combatido. E isso reflete-se muito nas posições oficiais do Ministério Público, que arquiva casos, ou de instituições como a CICRD [Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial], que, se não arquiva os casos, eles acabam por morrer nas mãos do Ministério Público. Ou então nas decisões da Entidade Reguladora para a Comunicação Social que, perante queixas por discriminação, ou arquiva ou emite uma espécie de nota de repúdio, e não tem poder para exercer qualquer tipo de penalização a um meio de comunicação racista”, continua Piménio.
Isto para não falar no facto de “a esperança média de vida das pessoas ser inferior em 15 a 20 anos”. “O que significa que morrem antes da idade de reforma”, frisa.
De acordo com Piménio, “o racismo ambiental é muito expressivo nas comunidades ciganas”: “Nos diversos reinados de Portugal, as diferentes comunidades ciganas eram expulsas diretamente pela lei para fora do país. E hoje o Estado continua a expulsar comunidades ciganas de espaços que acha que devem ser ‘higienizados’ e empurra-as para territórios que depois não são cuidados”, retrata.
E dá exemplos paradigmáticos, como o Bairro de Chelas: “Repara o sítio onde ele foi construído. Não é um ‘espaço nobre’ da cidade”. Ou locais como o Bairro das Pedreiras, em Beja, “atirado para trás de um canil, do parque de materiais da cidade, onde não há qualquer tratamento do solo, é terra batida, com casas auto-construídas, sem direito a eletricidade, água canalizada, sem direito sequer a recolha de lixo. “Houve uma altura em que chegaram a ter um caixote de lixo próximo, mas depois retiraram-no e afastaram-no da comunidade”, descreve.
Para o ativista, “a questão da recolha de lixo é flagrante”. “Muitas vezes, os caixotes de lixo não têm o volume adequado à densidade populacional dos bairros e não são recolhidos com a frequência que deviam, forçando à acumulação de lixo”, denuncia.
E conclui: “Existe, portanto, uma situação calamitosa em que vês o uso da poluição ambiental como forma de expulsar as pessoas, de lhes retirar a dignidade e de as desumanizar”.
Para Maria Gil, enumerar as múltiplas discriminações de que as comunidades ciganas são alvo é, à partida, uma desafio: “Desde o momento em que temos a perceção de que o racismo é sistémico e estrutural percebemos que ele é tão intrínseco à sociedade portuguesa que, inclusive, vamos perdendo a capacidade de enumerar as suas ramificações”.
“As discriminações estão sob uma estrutura que as deixa tão camufladas que, muitas vezes, as próprias pessoas racializadas se tornam hospedeiras desse racismo. Não é que sejamos racistas, mas, de alguma forma, vamos reproduzindo o sistema, fazendo-nos reprodutores de ações que colidem com os nosso próprios interesses e com a desconstrução do racismo”, explica.
É preciso conhecer os dados sobre o racismo e a ciganofobia
Piménio sublinha que “essa recolha já é feita”. “O que é necessário é que tenhamos acesso a esses dados de forma pública, isenta e para criar políticas públicas para combater as quotas racistas que têm promovido populações brancas em detrimento de populações não brancas”, defende.
Maria Gil também defende a recolha oficial e transparente de dados étnico-raciais. “Ainda que correndo riscos que sabemos que corremos. Porque, pelo menos, são riscos que podemos identificar. Na verdade, já existem listas em hospitais, listas na Segurança Social, listas nas escolas que os nossos filhos frequentam que fogem a qualquer tipo de controlo das pessoas racializadas, de coletivos que nos representem”, avança.
Para começarmos a combater o flagelo do racismo estrutural é preciso que a sociedade entenda “que branco não é gente, branco é uma identidade. E é uma identidade coletiva, construída com 600 anos de políticas anti-ciganas”, refere Piménio.
Maria Gil reforça que, muitas vezes, as pessoas ciganas se tornam “hospedeiras da sequência de exclusões” de que são alvo. “E há questões que deixam de ser questões para nós porque nos foi retirada a permissão de conhecermos as nossas próprias urgências. Quando estamos tão submersos a salvar a pele, há, obviamente, muitas reivindicações que vão ficando para trás. E não é porque tenham maior ou menor importância, mas sim porque a sobrevivência se sobrepõe a todas elas”, realça.
“O capitalismo não existiria se não fosse o racismo”
“O capitalismo não existiria se não fosse o racismo. E a Europa Moderna não existiria se não fosse o anti-ciganismo. São estruturais por isso mesmo”, enfatiza Piménio.
“Eles precisam de matéria-prima para ser a base do seu privilégio. Transformar determinadas classes e pessoas racializadas em matéria-prima para a sua sustentabilidade. O capitalismo precisa sempre da exploração do pobre e do racializado”, refere Maria Gil.
A ativista expressa a sua preocupação face ao facto de “a perversidade do racismo, do machismo ser muito gritante na Educação. De acordo com Maria Gil existe um “processo de invisibilização” , um “genocídio cultural”. “Estão a transformar as nossa crianças em matérias-primas para instituições de reeducação, da Segurança Social e tudo o que gera empregos para pessoas brancas”, esclarece.
“Somos cidadãs portuguesas, mulheres e ciganas num país patriarcal”
Sobre o facto de ser também discriminada como mulher, a ativista clarifica: “Somos cidadãs portuguesas, mulheres e ciganas num país que tem um contexto patriarcal. E digo ‘e ciganas’ porque exatamente antes da condição de pessoa cigana, tenho a minha condição de cidadã portuguesa e mulher”.
Maria Gil pensa “num feminismo progressista, com a envolvência de todos e todas”, mas reconhece que é necessário combater o racismo na sociedade em geral e dentro das comunidades ciganas em particular. É preciso acabar com esta tendência de, no espaço mediático, entre outros, perguntar às mulheres ciganas sobre a virgindade e o casamento e aos homens sobre o seu grau académico.
As mulheres não podem ser vistas como “mulheres insufláveis que dizem o que esperam que elas digam” ou servir apenas para “colorir as lutas”.
Discriminações têm inúmeras ramificações
No working paper “Realojar, despejar, guetizar. Arqueologias de uma violência obliterada: habitação e racismo nos relatórios nacionais/internacionais”, de 2018, a investigadora do CES Ana Rita Alves”, de 2018, a investigadora do CES Ana Rita Alves cita alguns relatórios do European Commission against Racism and Intolerance (ECRI) e do European Monitoring Centre on racism and xenophobia (EUMC) que são expressivos no que se refere à discriminação habitacional a que estão sujeitas as comunidades ciganas portuguesas.
No quarto relatório sobre Portugal, de 2013, o ECRI, reforça a sua preocupação face à situação habitacional das comunidades ciganas e aponta ainda os processos de segregação enfrentados por estas populações, exemplificando com o muro que cercava parte do Bairro das Pedreiras, em Beja. Neste documento, o ECRI refere que “um grande número de ciganos vive ainda em condições precárias, muitas vezes em acampamentos de barracas ou de tendas” e que “vários locais estão cortados do resto da população”. Estes locais estão situados “a alguns quilómetros das cidades, mal ou não servidos pelos transportes públicos, e os seus habitantes não dispõem de serviços nem de equipamentos públicos nas proximidades”. Acresce que “as infraestruturas de base frequentes vezes não existem, tal como o acesso à água potável, a eletricidade ou a evacuação de águas usadas”.
No seu quinto relatório, o ECRI observa que Portugal continua a não atender a anteriores advertências.
Já o relatório de 2005 do EUMC confirma que “as populações ciganas e os migrantes do denominado leste europeu” são “os mais vulneráveis à discriminação no campo da habitação”, estimando que cerca de um terço da população cigana (31%) vivesse ainda de forma bastante precária. O EUMC denuncia ainda a criminalização dos territórios e corpos racializados, afirmando que “imagens e percepções sobre as condições habitacionais e os bairros onde habitam grupos minoritários e as suas supostas ligações ao crime, à violência e ao tráfico de droga são também vistos como factores que criam hostilidade e formas de exclusão adicionais”. São avançados casos concretos, como a hostilidade por parte das autoridades locais de Arcozelo, em Ponte de Lima, ou a demolição de habitações em Vila Verde. Estas situações acontecem, de acordo com o EUMC, “num país em que a discriminação das famílias ciganas no mercado privado de compra de habitação é explícita”. Conforme destaca Ana Rita Alves, no documento é reconhecido que a marginalização das comunidades ciganas é promovida de forma individual, institucional e política.
Já no relatório Housing Conditions of Roma and Travellers da Fundamental Rights Agency (FRA), datado de 2009, são enumerados os principais problemas habitacionais das populações ciganas a viver em Portugal se relacionam com: i) a ilegalidade das ocupações e das construções; ii) o realojamento temporário em casas de madeira ou contentores; iii) o realojamento social em bairros homogéneos e periféricos. O documento refere ainda “as perseguições, expulsões e agressões por parte da polícia, sublinhando a inexistência de lugares em Portugal destinados a população ‘itinerante’” e os processos de segregação espacial. Os bairros da da Cucena (Seixal), Pedreiras (Beja), Quinta da Torrinha (Lisboa) ou Margens do Arunca (Pombal) são disso exemplo.
O Estudo nacional sobre as comunidades ciganas, de 2014, dá conta de que 27,5% de ciganos portugueses vivem em barracas ou tendas.
Mas o racismo de que são alvo as comunidades ciganas, e as discriminações que lhe são consequentes, têm muitas outras ramificações.
O 2º inquérito sobre Minorias e Discriminação na União Europeia - Ciganos, da FRA, datado de 2016, explica que 74% dos ciganos portugueses tinham "grandes dificuldades de subsistência".
Por outro lado, e segundo dados da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância do Conselho da Europa (ECRI), 90% das crianças ciganas abandonam a escola antes de concluírem o ensino obrigatório (frequentemente entre os 10 e 12 anos de idade), ao passo que a taxa de abandono é de 14% para a população geral. Já o 2º inquérito sobre Minorias e Discriminação na União Europeia - Ciganos, FRA, 2016, refere que 91% dos jovens ciganos (18-24) em Portugal abandona o ensino e a formação precocemente e que 69% dos ciganos portugueses com mais de 45 anos não concluiu qualquer nível de ensino formal.