You are here

A antigeringonça de António Costa

O primeiro-ministro não quis verdadeiramente negociar o Orçamento e, perante essa recusa, o presidente da República decidiu dissolver o Parlamento.

Ambos terão as suas razões para precipitar umas eleições que mais ninguém parece desejar. Chegados aqui, importa compreender as razões políticas deste desfecho e retirar daí algumas lições.

Em 2015 a geringonça fez-se em torno de um acordo para a recuperação de rendimentos. Esse acordo foi cumprido e trouxe estabilidade ao país e à vida das pessoas. Em 2019, abriu-se uma divergência. O Bloco entendia que o seu apoio a um Governo minoritário de António Costa requeria um novo acordo em torno de reformas estruturais para combater as desigualdades e os baixos salários, reforçar os serviços públicos e repensar os apoios sociais. Costa não quis vincular-se a um entendimento estável com a Esquerda e rejeitou os princípios do compromisso político que lhe era proposto. O Governo navegaria à vista.

Durante esta legislatura, o PS votou mais vezes com PSD, CDS e IL do que com o Bloco e o PCP. Em vez de processos de convergência com estes dois partidos, António Costa preferiu negociações pontuais, apressadas, e sempre sob a ameaça mais ou menos velada de uma crise política. Na ausência de um projeto mobilizador, o PS reclamou o apoio do PCP e do Bloco em nome de medidas concretizadas no passado, mas que não resolvem os problemas de hoje.

A estabilidade não é um valor vazio ou um fim em si mesmo. E não falo apenas das relações de confiança partidária, desgastadas por simulacros negociais, orçamentos não executados e compromissos não cumpridos. O SNS, a habitação ou os transportes públicos precisam de muito mais que remendos. A crise dos combustíveis não se resolve com anúncios engenhosos. As regras laborais não podem continuar a comprimir os salários.

Para estas questões a Direita não tem resposta. Têm saudades do poder, mas o que propõem para lá de aproximações ao discurso do ódio? É privatizando o SNS e os transportes que se resolvem os problemas do país? É precarizando o trabalho que se melhora a vida das pessoas? A especulação imobiliária assegurou casa a alguma família? Que futuro defendem quando adiam a resposta climática com estímulos "de mercado"?

Enquanto a Direita se engalfinha sem programa que se conheça e condenando-se à irrelevância, só a força da Esquerda pode renovar uma proposta mobilizadora. Isso requer um entendimento com o PS sobre questões centrais da organização da sociedade, como as regras do trabalho ou a organização dos serviços públicos. Sempre que o PS diz ao Bloco e ao PCP que certas áreas da política pública lhes estão interditas, o que faz é negar um acordo político de futuro. É por isso que Costa não deixará de apelar à maioria absoluta, à antigeringonça: desobrigar o PS de negociar com o Bloco e o PCP é permitir que o PS nunca faça as reformas que agora recusou.

Culpar a Esquerda e agitar o papão da Direita para, no fim, deixar tudo na mesma pode servir uma estratégia eleitoral de curto prazo do PS, mas não resolve o desgaste do SNS ou os salários baixos face à subida de todos os preços. Estabilidade é outra coisa.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 2 de novembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
(...)