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Portas giratórias não pararam de rodar entre governos europeus e petrolíferas

Um relatório do Corporate Europe Observatory, Friends of the Earth Europe e Food & Water Action Europe detetou desde a assinatura do Acordo de Paris 71 casos de portas giratórias entre governos europeus ou instituições públicas e as seis maiores empresas de energia ou cinco dos seus lóbis.

As empresas são a Shell, BP, Total, Equinor, ENI e Galp e os grupos de lóbis são o Hydrogen Europe, Eurogas, FuelsEurope, IOGP e CEFIC, que gastaram mais de 170 milhões entre 2015 e 2021 para tentar influenciar as decisões políticas. Além dos 71 casos de pessoas que passaram de cargos públicos para estas empresas ou vice-versa, a investigação contabilizou 568 reuniões de lóbis e empresas com altos funcionários da Comissão Europeia durante estes anos, uma média de 1,5 reuniões por semana.

Nestas reuniões, as empresas poluidoras tentam fazer avançar a sua agenda de emissões “net zero”, que lhes permite continuar a poluir em troca da implementação de falsas soluções como a “captura e armazenamento de carbono”, o “mercado de emissões de carbono” ou o “hidrogénio verde”. Ao mesmo tempo, procuram demover os responsáveis políticos de adotarem medidas que realmente fariam a diferença para cumprir a meta do aquecimento abaixo de 1.5ºC, o que requer deixar no solo 60% das reservas de gás e petróleo e 90% das de carvão.

No caso da petrolífera francesa TotalEnergies, o relatório aponta 15 casos de portas giratórias, 31 reuniões com a elite de Bruxelas e 13 milhões gastos em ações de lóbi. Ahlem Gharbi, que foi vice-presidente adjunto de Relações Internacionais da petrolífera entre 2015 e 2017, saiu diretamente para o gabinete presidencial de Emmanuel Macron, enquanto conselheiro para os assuntos do Norte de África e Médio Oriente. Dois anos mais tarde, foi nomeado diretor da Agência Francesa para o Desenvolvimento. Para o seu lugar na petrolífera entrou em 2019 Majdi Abed, que desde o início do século ocupou várias funções no Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, tendo sido cônsul do país no Dubai.

Para a administração da Total entrou em 2016 a antiga ministra holandesa que entre 2002 e 2010 ocupou as pastas da Educação, Cultura, Ciência e Assuntos Económicos. Maria van der Hoeven foi também diretora da Agência Internacional de Energia entre 2011 e 2015. Em 2016, já enquanto administradora independente da petrolífera, integrou o grupo de especialistas da Comissão Europeia sobre descarbonização.

No caso da Shell foram identificados 10 casos de portas giratórias, 85 reuniões com funcionários de topo em Bruxelas e 28 milhões de euros em despesas com lóbi junto da Comissão. Aqui destaca-se o caso do holandês Gerrit Zalm, que durante 13 anos, entre 2994 e 2007, foi ministro das Finanças do país. Foi para a Shell em 2013 como diretor não-executivo independente, o que não o impediu de em 2017 presidir às negociações para a formação do novo Governo dos Países Baixos. Curiosamente, ou talvez não, o acordo de coligação que resultou das negociações incluiu uma velha reivindicação da petrolífera: a eliminação do imposto sobre os dividendos.

Tabe van Hoolwerff fez o percurso completo destas portas giratórias; entre 2011 e 2013 foi conselheiro jurídico de vários ministérios dos Países Baixos. Em 2014 foi contratado pela Shell, onde ocupou várias posições, incluindo no Conselho jurídico de operações globais da petrolífera. Cargo que abandonou em 2020 para regressar ao Governo, enquanto conselheiro para a indústria sustentável no Ministério da Economia e Clima.

Por seu lado, a petrolífera BP optou por contratar nos setores da defesa e inteligência britânicos. Para diretor não-executivo independente entrou em 2015 John Sawers, que chefiou entre 2009 e 2014 a agência de espionagem MI6. Em 2017, foi buscar para conselheiro Nick Houghton, que ocupara o mais alto cargo  das Forças Armadas britânicas no aconselhamento ao Governo. E o líder da administração da BP é desde 2019 Helge Lund, que foi durante três anos, entre 2011 e 2014, membro do grupo de aconselhamento do Secretário-Geral da ONU para a Energia Sustentável.

A petrolífera italiana ENI tem apostado nas ligações diplomáticas nos seus recrutamentos de topo. O ex-embaixador italiano e Teerão e diretor político do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Luca Giansanti, tornou-se em 2019 vice-presidente e responsável pelas relações com governos europeus. Também Pasquale Salzano, com longa carreira na liderança dos negociadores italianos no G8 e G20, foi nomeado pelo Governo em 2011 para  a ENI, onde em 2014 subiu a vice-presidente com a pasta das relações internacionais, antes de sair em 2017 para o cargo de embaixador italiano no Qatar. Também o ex-vice-ministro dos Negócios Estrangeiros e eurodeputado Lapo Pistelli trocou a política pelo petróleo em 2015 e é hoje o Diretor de Relações Públicas da ENI.

Numa lista que também inclui a passagem do ex-governante português Adolfo Mesquita Nunes, do CDS, para a administração da Galp, o relatório aponta ainda o caso da norueguesa Equinor, que contratou para liderar o grupo de conselheiros britânico a antiga ministra do Interior Amber Rudd, que enquanto responsável pela pasta da Energia e Alterações Climáticas liderou a delegação britânica na negociação do Acordo de Paris. Para liderar as Relações Públicas da Equinor, a empresa foi buscar em 2019 uma ex-secretária de Estado de vários ministérios noruegueses. Lotte Grepp Knutsen já saiu da petrolífera e regressou ao Governo enquanto Secretária de Estado das Finanças. O seu vice na Equinor, Stein Hermes, também ocupou cargos políticos no Governo norueguês e foi conselheiro do Secretário-Geral da NATO para a comunicação estratégica.

Estes são alguns dos casos documentados apenas nas maiores petrolíferas europeias e ilustram bem que apesar dos discursos e das tímidas medidas, estamos perante um problema sistémico de conflito de interesses no que diz respeito à política climática. Para os autores do relatório, as regras da UE para as portas giratórias continuam inadequadas e por implementar. “Enquanto isso, as negociações climáticas da ONU admitem empresas de combustíveis fósseis como patrocinadores e membros desta indústria integram as delegações oficiais”, acrescentam, lamentando que a União Europeia e outros países continuem a bloquear as tentativas para regular conflitos de interesses em conferências como a COP16, propostas que são ”apoiadas por governos que representam 70% da população mundial”.

Estas ONG propõem um período de nojo de cinco anos para cargos inferiores e de dez anos para altos cargos, o fim da prática dos estágios e nomeações para posições na indústria por parte dos governos e vice versa, a implementação de uma barreira que impeça o acesso da indústria dos combustíveis fósseis aos processos de decisão, incluindo reuniões com os seus representantes, e finalmente o apoio por parte da UE a uma política de restrição de conflitos de interesses nas Conferências da ONU (UNFCCC).

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