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Teletrabalho: um caminho feito, outros por fazer

Apesar do estado de negação de algumas declarações públicas de dirigentes do PS, há um indicador positivo. O PS aceitou que o teletrabalho não pode ficar dependente de regras facultativas e conseguiu-se que deitasse ao lixo algumas ideias perigosas que existiam na proposta apresentada em abril.

Em abril deste ano, na sequência de um agendamento do Bloco de Esquerda, o Parlamento debateu as regras do teletrabalho. O projeto de lei que o Partido Socialista apresentou então era uma verdadeira aberração. Primeiro, propunha regular o teletrabalho fora do Código, numa lei à parte, criando contradições e colocando esta modalidade de trabalho num estatuto separado. Segundo, inventava um conceito de “tempo de contacto” paralelo ao tempo de trabalho, isto é, criava um tempo de disponibilidade não remunerada do trabalhador, legitimando por essa via as incursões patronais no período de descanso. Terceiro, fazia depender as regras, incluindo o pagamento das despesas do teletrabalho, do “acordo do empregador”, ou seja, dava aos patrões todo o poder para determinarem se aquelas normas valiam ou não, permitindo que um acordo individual afastasse o direito do trabalhador à privacidade ou a ser compensado pelas despesas acrescidas em teletrabalho e permitindo que a contratação coletiva sobre esta matéria fosse pior que a lei geral. Finalmente, entre outras coisas, o projeto do PS previa que o teletrabalhador fosse pago não pelo seu tempo de trabalho mas por objetivos. Em suma, tratava-se de um projeto absurdo, sem ponta por onde se lhe pegasse, objeto de críticas até no campo PS e por parte dos coordenadores do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, um projeto cujo único destino era ser rotundamente chumbado no Parlamento.

Certamente por isso, o PS solicitou reuniões com o Bloco para saber o que seria necessário para uma legislação viável na Assembleia. Nessas reuniões com o PS, que tiveram lugar no Parlamento na semana passada, o Bloco identificou condições elementares para uma lei: o teletrabalho tinha de ser regulado pelo Código de Trabalho, o disparate do “tempo de contacto” tinha de ser eliminado, as regras sobre teletrabalho deviam ser imperativas e sempre submetidas ao princípio do tratamento mais favorável (isto é, nunca poderem ser negociadas em sentido pior que a lei), era preciso prever um dever de desconexão por parte dos patrões para impedir contactos fora do horário de trabalho, era necessário garantir a reversibilidade de qualquer acordo (ou seja permitir sempre ao trabalhador voltar ao trabalho presencial).

O PS substituiu o seu projeto por um novo texto, entregue na Comissão Parlamentar de Trabalho, abandonando a aberração que propusera em abril e aceitando várias das propostas que constavam da iniciativa do Bloco. Foi um passo importante

Após vários contactos e troca de documentos, houve na passada sexta-feira uma evolução positiva. O PS substituiu o seu projeto por um novo texto, entregue na Comissão Parlamentar de Trabalho, abandonando a aberração que propusera em abril e aceitando várias das propostas que constavam da iniciativa do Bloco. Foi um passo importante.

No novo texto, o teletrabalho é regulado pelo Código e não por uma lei à parte, Fica consagrada a aplicação ao teletrabalho do princípio do tratamento mais favorável (a lei é imperativa e não pode ser afastada por acordo individual ou coletivo em sentido menos favorável), princípio que aliás devia ser geral, e não apenas para o teletrabalho. Fica estabelecido o caráter imperativo do pagamento das despesas, em vez de o fazer depender da concordância dos patrões. Caiu a ideia desastrosa do tal “tempo de contacto” diferente do período normal de trabalho. Fica consagrado um dever de desconexão por parte das empresas, ou seja, um dever de as entidades patronais se absterem de contactar os trabalhadores fora do período normal de trabalho. Fica definida a obrigação das empresas de fornecerem a sindicatos e CTs os contactos de quem está em teletrabalho. Fica garantida a reversibilidade dos acordos de teletrabalho, salvaguardando que o trabalhador pode sempre voltar ao trabalho presencial se for essa a sua vontade e sem ter de a fundamentar.

Estas alterações de fundo abrem a possibilidade, inexistente em abril, de aprovação de uma nova lei para o teletrabalho ainda este ano.

Há todavia vários debates por fazer e diferenças de perspetiva que subsistem. Por exemplo, o PS continua a rejeitar incompreensivelmente que a lei explicite que se mantém sempre o direito ao subsídio de refeição quando se está em teletrabalho. E continua a insistir na menção a um “direito a desligar” que na verdade já existe e cuja referência numa norma à parte é uma confirmação supérflua de um direito que já resulta da lei (o direito a não estar conectado no período de descanso), mas cuja nova consagração tem o efeito perverso de colocar o ónus do exercício desse direito sobre o trabalhador (é este que pode desligar os equipamentos), e não sobre o empregador. Ora, é ao patrão que a lei tem de exigir que não invada o tempo de descanso do trabalhador com comunicações, prevendo inclusive (coisa a que o PS continua também a resistir) que a violação desse dever de desconexão das empresas deve ser considerado indício de assédio, e não apenas objeto de uma contraordenação. Finalmente, os anúncios que o Governo fez sobre o acesso de trabalhadores com filhos menores ao teletrabalho é contraditório e, para uma parte dos trabalhadores, um direito vazio, porque o PS quer excluir dessa regra as microempresas, além de continuarem a ser deixados de fora (como já vem sendo um triste hábito) os cuidadores e cuidadoras informais, o que é inaceitável.

Apesar do estado de negação de algumas declarações públicas de dirigentes do PS, há um indicador positivo. O PS aceitou que o teletrabalho não pode ficar dependente de regras facultativas e conseguiu-se que deitasse ao lixo algumas ideias perigosas que existiam na proposta apresentada em abril. Já não é mau. E é sobretudo bem melhor do que a abordagem que persiste para tantas outras áreas do trabalho, dos precários aos trabalhadores por turnos, do outsourcing à contratação coletiva, já para não falar dos despedimentos. Veremos o que nos trazem as próximas semanas.

Artigo publicado em expresso.pt a 19 de setembro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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