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Na morte de Otelo

Otelo foi o grande protagonista que, em todo o século XX, melhor conseguiu representar os anseios mais avançados e universais do povo português.

digam-me que não sou capaz e eu atrevo-me”
As palavras da nossa judoka campeã, Telma Monteiro, podiam ser as de Otelo na sua intervenção político/militar do 25 de Abril

Otelo foi o grande protagonista que, em todo o século XX, melhor conseguiu representar os anseios mais avançados e universais do povo português.

Foi o momento de acabar com o fascismo e com a guerra colonial; foi o momento de apoiar o povo na impetuosa assumpção de que era a si próprio que cabia o poder e que, antes de qualquer representação delegada, que instituiu com entusiasmo único na eleição da Assembleia Constituinte, era o tempo da construção da organização social e económica de acordo com os seus interesses populares não delegáveis.

Foi o tempo do PREC. Em ambos a figura que o povo livre e não só libertado, erigiu e elegeu como sua referência, como seu símbolo foi o Otelo. É escusada conversa redonda e balofa.

Depois da conjura e do golpe reaccionário do 25 de Novembro que quis vestir um colete de forças à democracia, dando-lhe o formato necessário ao actual ímpeto tecnológico totalitário, foi ainda Otelo quem, de alma e coração, com todo o entusiasmo e o optimismo que tantos celebram nele como virtude primeira para poderem diminuir o seu papel único na história, deu a cara e o "corpo ao manifesto”, aceitou ser o porta bandeira do maior e mais belo movimento de unidade popular, os GDUP, materializando o sentimento revolucionário popular que percorreu o país durante a revolução donde teve nome o golpe dos capitães do 25 de Abril.

E foi, portanto, ele o candidato desse movimento de unidade que, num derradeiro hausto da vontade popular expressa com tanto entusiasmo e tanta riqueza de alegria, amor e participação, capacidade de iniciativa e realização, fraternidade e solidariedade durante o PREC, quem nas eleições presidenciais de 27 de Junho1976, defrontou o chefe militar do 25 de Novembro, logo de toda a reacção – PS, PPD (futuro PSD), CDS e bombistas assassinos do Padre Max e da Maria de Lurdes sob a hégide do comandante da Região Militar Norte, Pires Veloso e do comandante da PSP norte, major Mota Freitas e com a benção da Igreja dada pelo cónego Melo - o então tenente coronel e futuro general Ramalho Eanes.

Otelo obteve 16,46% dos votos, o maior resultado de sempre, até hoje, de um projecto revolucionário de unidade popular em todo o denominado “mundo ocidental”, capitalista e imperialista.

Eanes venceu destacadíssimo com 61% dos votos.

Octávio Pato, o candidato apoiado pelo PCP, incapaz como sempre de integrar ou apoiar um projecto de unidade que lhe não seja subordinado, obteve 7,59%.

José Afonso foi a figura mais proeminante no apoio à candidatura presidencial de Otelo. Não foi ocasional o encontro entre ambos: o grande bardo e o chefe militar do PREC uniram-se no sentimento revolucionário que emanava do entusiasmo popular escorando a liberdade conquistada com a construção material e política da nova sociedade, no terreno concreto da cidade ”sem muros nem ameias”.

Otelo foi graduado em general para assumir o comando do COPCON: Comando Operacional do Continente. Talvez melhor do que ninguém, ou tanto como muito poucos, falo do MFA, Otelo percebeu que o tempo era do povo. E que a sua voz de comando e o seu pulso disciplinador só interessavam ao país a construir, se se conjugassem com o movimento que enterrava na alegria e na pujança da construção do novo, as ordenanças hierárquicas herdadas do passado fascista e colonialista e que o movimento popular sem a segurança e apoio do movimento dos soldados ficaria fragilizado.

Assim o bastão do comandante do Copcon era a sua percepção e aceitação do que emanava do entusiasmo, da entrega e da capacidade realizadora do povo, a única base de qualquer revolução. Porque Otelo depois de ter achado que, cumprida a missão, era hora de voltar à sua cadeira de professor da Academia Militar, alertado pelos camaradas: «olha lá, não vamos deixar isto nas mãos da Junta!» percebeu que do que se tratava era da Revolução.

E como disso nada percebia, foi visitar o Fidel e o Oloff Palme para tirar a bissectriz da esquerda. Mas afinal compreendeu que não havia bissectriz nenhuma: só havia um vector principal: a luta e a vontade popular. Espontaneísmo! Acusaram-no. De facto… Mas para quem tem quase todo o poder é a melhor escolha. A direcção encontra-se na luta e no conhecimento. A luta não dispensa, exige o conhecimento; e o conhecimento só se realiza na luta. Não sei se ele assim pensou. Mas foi assim que agiu e isso é que interessa.

Por isso foi arvorado em alvo a abater pelos partidos, da direita à esquerda, que tinham programas para, mal surgisse a oportunidade, imporem ao povo.

Por isso também os que do povo só tinham não uma visão revolucionária mas utilitária e quase distópica, mais o seu próprio paleio e a sua própria prosápia e auto-comiseração ainda que engalanada com muita coragem e autosuficiência, acharam que chegados ao Otelo, aproveitando-se dos seus entusiasmos espontaneístas, símbolo popular do 25 de Abril, ganhavam o prestígio que lhes falecia na acção.

Querido Otelo cá estamos. Muitos, alguns ainda à procura da bissectriz; outros sem dúvidas como sempre; outros ainda à procura da resposta na acção política apoiando a luta do povo que desponta, firmando-se no conhecimento das ciências sociais e das outras: “trabalhadores atacados não podem ficar isolados”, lembras-te?

Foi difícil, Pá! E não foi “nossa”.

Mas o teu trabalho, o teu papel e o teu exemplo terão mais repercussões futuras do que as tretas com que pretendem enrolar o pessoal.

Um grande abraço, daqueles que só tu sabias dar, com o sorriso fraterno a rasgar horizontes de solidariedade.

Sobre o/a autor(a)

Coronel na reforma. Militar de Abril. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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