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Passar por baixo ou por cima da fasquia da inflação?

Mesmo reconhecendo que o controlo das taxas de juro é insuficiente, no que Draghi, Lagarde e outras figuras de topo do BCE têm insistido, a referência à política orçamental é omissa.

Christine Lagarde anunciou uma mudança cirúrgica na fórmula misteriosa e incompetente que, desde 2003, restringia o objetivo do BCE ao controlo da inflação a um nível “abaixo, mas próximo de 2%”, e atribuiu um valor mágico a essa mudança. É certo que, ao longo dos seus 18 anos de vigência, a velha regra tolerou políticas diametralmente opostas: Trichet subiu as taxas de juro no contexto da crise do subprime e o erro foi repetido na primavera de 2011, mesmo quando já rebentava a crise das dívidas soberanas, ao passo que Draghi respondeu a partir de 2012 ao prolongamento da recessão com uma inundação de liquidez na economia europeia (“tudo o que for necessário”), o que aliviou a situação dos países mais endividados e deu um impulso à recuperação europeia. No entanto, em ambos os casos o dogma do controlo da inflação sobreviveu sempre e, mesmo quando Draghi saiu do livro de receitas tradicionais, o risco que enfrentava era a deflação, arrastada por um longo período de crescimento anémico — e a deflação transformaria a recessão em depressão. A viragem imposta por Draghi foi concretizada em 2015 com o programa de compra de emissões de dívida soberana e empresarial, mas a doutrina do Banco não tinha mudado.

Os bancos centrais aprendem tarde?

Agora, com a nova fórmula, que supõe que passa a haver uma simetria na resposta aos desvios em relação aos 2% (incluindo da habitação), a margem de manobra do BCE é ampliada. A notícia tem sido festejada, embora a resolução do BCE seja escrita num tom florentino, repetido pela recente entrevista de Mário Centeno. Assim, nesse labirinto é tão importante o que é dito como o que não é dito: por exemplo, mesmo reconhecendo que o controlo das taxas de juro é insuficiente, no que Draghi, Lagarde e outras figuras de topo do BCE têm insistido, a referência à política orçamental é omissa.

As empresas mais responsáveis por emissões continuam a ser financiadas pelos programas europeus e protegidas pelos seus governos, no transporte ou na energia

O facto é que outros bancos centrais foram muito mais longe. A Reserva Federal reviu os seus objetivos, que já a comprometiam com a estabilidade anticíclica, e aumentou o seu objetivo de inflação em agosto do ano passado, passando a usar um valor médio como referência. O Banco da Nova Zelândia acrescentou há três anos o pleno emprego ao seu menu de objetivos, uma expressão que provoca arrepios aos dirigentes da zona euro, e este ano somou-lhe a meta da estabilidade dos preços da habitação. O Banco do Japão e, a partir do ano passado, também o Banco da Austrália decidiram usar os custos de crédito a médio prazo como variável de controlo. Noto que todos estes bancos centrais eram profetas da ortodoxia e que, com os seus ajustamentos, constatam simplesmente que o modelo da gestão monetarista das políticas monetárias faleceu na última década.

O enigma dos riscos climáticos

O BCE prometeu ainda considerar os efeitos das alterações climáticas, verificando as condições de “neutralidade de mercado”, assim admitindo que nem sempre os riscos de efeitos climáticos estão bem calculados e que o mercado pode ser enviesado a favor das empresas poluentes. O efeito desta medida pode ser reduzido, mas não deixa de ser um sinal. Como argumenta Adam Tooze, um dos historiadores económicos que melhor retratou a crise de 2008-9, o BCE, ao admitir que o clima é um problema, está preocupado com os impactos dos custos climáticos na estabilidade financeira, notando que a resposta de outros bancos centrais pode impor a desvalorização de ativos de grandes empresas. Por exemplo, o Banco de Inglaterra passou a definir a transição climática como um dos seus critérios de atuação.

Aberta esta porta, ninguém sabe o que vem a seguir, até porque as empresas mais responsáveis por emissões continuam a ser financiadas pelos programas europeus e protegidas pelos seus governos, no transporte ou na energia.

O remédio pode ser perigoso

Haverá então alguma diferença entre passar por baixo ou por cima da fasquia dos 2%? Há duas diferenças e são importantes. Em primeiro lugar, a recuperação das economias dependerá de relançar o consumo reprimido durante os confinamentos e exige mais gastos em capital fixo, ou seja, um aumento da procura agregada. Se isso provocar alguma inflação, tanto melhor, desde que a posição dos sectores mais desprotegidos da população seja salvaguardada, pois esse processo provocaria a redução do valor das dívidas e poderia estimular o investimento, além de recuperar as margens bancárias com menor pressão para operações especulativas.

A segunda razão para procurar ter mais do que 2% de inflação é que isso já está a acontecer nos EUA (5% em maio), o que levará rapidamente a ajustamentos das taxas de juro de referência nesse país. Se estas forem significativamente maiores do que as europeias, os fluxos de capitais pressionarão o BCE a ir atrás da Reserva Federal, mesmo que subir os juros sabote a recuperação na região. Assim, o remédio pode ser um veneno. Por isso, a jaula dogmática da inflação a 2% é um risco para as economias do velho continente, que se arriscam a ficar com o pior de dois mundos: economia deprimida com inflação baixa e juros altos. Para quem queira reforçar a hegemonia norte-americana, a fórmula seria excelente.

Artigo publicado no jornal “Expresso” de 16 de julho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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