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O dilúvio na Alemanha não foi uma "catástrofe natural"

Desta vez, o desastre chegou ao centro do poder europeu. O que mais será necessário para que se entenda que estas catástrofes são previsíveis, que têm causas e responsáveis?

As catástrofes naturais são acontecimentos súbitos de origem natural e, por isso, imprevisíveis e inevitáveis. O dilúvio que nos últimos dias matou 165 pessoas e fez mais de 2000 desaparecidos em vários países europeus, tal como a vaga de calor mortífera no Canadá, não cumprem essas características.

Há três décadas que os fenómenos climáticos extremos vêm a ser previstos, desde logo pelo Painel Intergovernamental sobre as alterações climáticas. A verdade que os negacionistas tentaram calar está à vista de todos: o aquecimento global provocado pelos modos de produção e consumo das maiores economias mundiais está a causar danos irreparáveis ao planeta. E tudo só pode piorar.

Desde logo porque as consequências desta transformação estrutural tendem a ser ignoradas e, por isso, pouco prevenidas e mitigadas. No caso deste dilúvio, o aviso lançado pelos meteorologistas não levou a que fossem tomadas as medidas necessárias para conter o desastre. As restrições orçamentais e os interesses económicos ligados ao imobiliário falaram mais alto do que a necessidade de investir preventivamente na proteção civil e no território, combatendo, por exemplo, a impermeabilização dos solos.

Não esqueçamos, no entanto, que a importância de mitigar os efeitos da catástrofe não substitui ou reduz a necessidade de uma viragem definitiva na política energética, com o abandono urgente do consumo de combustíveis fósseis e a alteração das formas de produção e consumo. Mas não é isso que está a acontecer.

Para lá das parangonas e promessas de mudança, na UE assume-se já a "ultrapassagem temporária" do limite de 1,5oC de aquecimento global, supostamente compensado mais tarde por um idílico arrefecimento. Perante os atuais efeitos catastróficos de um aquecimento de 1,1oC, torna-se evidente onde esse percurso nos levaria.

Dizer que o mercado, que nos trouxe aqui, nos vai salvar do cataclismo, por força de uma nova onda de "investimentos verdes", é fugir à verdade do problema e, logo, às suas soluções. Só planos públicos de reconversão dos transportes, da habitação, da produção e distribuição de energia e outros bens poluentes podem alterar a economia e combater os gigantescos lóbis que mantém tudo na mesma, ainda que pintado em tons de verde.

A mobilização por justiça climática é hoje a luta pelos direitos humanos. A acumulação desenfreada por parte dos grandes beneficiários do atual modelo económico gera fenómenos extremos a que correspondem crises humanitárias, com o seu cortejo de fome, deslocações em massa e conflitos por recursos. Crises a que a Europa tem assistido de longe, preocupada sobretudo em manter as vítimas fora das suas fronteiras. Em 2020, um terço do território do Bangladesh ficou submerso no período das monções. Desta vez, o desastre chegou ao centro do poder europeu. O que mais será necessário para que se entenda que estas catástrofes são previsíveis, que têm causas e responsáveis?

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 20 de julho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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