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Recife Frio, Canadá Escaldante

Será a humanidade capaz de se emancipar da sua própria destruição? A geração da greve climática lançou uma pergunta que permanece sem resposta mas que engrossou o campo do progresso.

Em 2009 Kléber Mendonça Filho realizou um filme premonitório. Bem, na verdade, nem tanto. Recife Frio (Cold Tropics) recorre a tudo o que já era conhecido sobre as alterações climáticas e a certeza paradoxal da sua imprevisibilidade para imaginar o que aconteceria se um dia – qualquer dia – aquela capital nordestina acordasse numa vaga de frio.

A opção por um falso documentário é sintoma da genialidade do realizador, uma opinião pessoal pouco relevante para o caso mas atestada por uma filmografia que inclui obras tão imperdíveis como Aquarius ou Bacurau. A reportagem ficcionada está cheia de subtilezas sobre o que é o Brasil, um país que acredita em pecados e tantas vezes tenta perdoá-los pelo clima tropical.

Mas também isso é aqui lateral. A sátira é sobre o caos climático e sua relação com as desigualdades sociais. O frio expõe uma elite pós-colonial para quem “gente pobre está mais chique passando frio”; um pai natal que passa de repente a ser a única personagem adaptada ao novo clima; os 300 pobres – ou negros de tão pobres – que morrem de frio; a classe alta que de repente se vê vítima de uma arquitetura em que o único quarto quente é o da empregada, junto à cozinha, para onde se muda o filho do patrão.

Recife Frio é mais do que a impossibilidade de sobrevivermos à destruição do planeta pelas alterações climáticas – é sobre quem morre primeiro. As mulheres, os pobres, os negros, os setores excluídos da sociedade são para-choques do embate, depois agravado por guerras, desastres ambientais, crises económicas, migrações em massa e outros infernos de que são também as primeiras vítimas.

Será a humanidade capaz de se emancipar da sua própria destruição? A geração da greve climática lançou uma pergunta que permanece sem resposta mas que engrossou o campo do progresso. A contradição entre capital e natureza é mais profunda do que o alívio moral de que goza a classe alta ao volante do seu Tesla enquanto o sistema transfere para os de baixo o preço de uma falsa transição energética e industrial.

Difícil é pensar numa estratégia que não passe pela criação de novos mercados onde se transacionam valores ambientais que hoje não têm preço, ou que não nos diga que a culpa da seca é nossa – e só nossa – porque não lavamos os dentes com escova de bambu. A imaginação do capitalismo verde será inesgotável porque os seus interesses são irreconciliáveis. Mas não garante o futuro.

Por todo o planeta, regiões de clima mediterrânico – do sopé da Sierra Nevada aos vales e costa da Califórnia, passando pelas terras vinícolas nos arredores da Cidade do Cabo, na África do Sul, até aos vale central do Chile, à costa sul da Austrália ou ao próprio Mediterrâneo – estão a entrar em ciclos imparáveis de secas, ondas de calor e incêndios florestais.

No Canadá, onde as temperaturas atingiram recentemente 50 graus, as autoridades estão a analisar se a morte súbita de quase 500 pessoas está relacionada com as temperaturas extremas causadas pela onda de calor que atingiu a Colúmbia Britânica, no Oeste do país.

A pandemia pode ter afastado as atenções de um problema que afinal não lhe é tão alheio como gostaríamos; o capitalismo pode estar descansado, arrogantemente convencido pela impunidade histórica dos seus crimes de que, enquanto o pau vai e volta, folgam as costas. 

Mas desta vez não. Recife Frio tem tanto de delirante como o Canadá de escaldante. E não haverá caminho se não se mobilizarem os recursos públicos e as transformações do sistema económico para essa evidência. A conclusão é, afinal, aquela que a esquerda tirou: “Se o ambiente fosse um banco, já estava salvo”.

Artigo publicado no jornal “I” a 15 de julho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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