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A elite desgraçada (e o sistema que a criou)
Anjos caídos, ilustres e destacados membros da elite nacional que agora ocupam as cadeiras dos réus – dos corredores do poder passaram para os corredores do tribunal. A nata da sociedade afinal estava estragada, azedou. A queda do banco do regime (ou seria este o regime do banco?) levou à queda das cartas, marcadas no baralho dos esquemas financeiros, dos negócios de favor, da cortina de fumo que os amores clubísticos ajudaram a manter. Tudo se passava debaixo dos nossos olhos, mas poucos queriam ver.
Agora há uma turba a criticar Berardo, muitos dos quais lhe batiam nas costas, o tratavam por comendador ou invejavam os conhecimentos de arte. A corrida para destruir fotografias e apagar memórias marca a pressa para trancar as mesmas portas que antes lhe estavam escancaradas. Berardo não era um estranho no sistema, ele foi sua criação. E nem a fanfarronice lhe é unicamente imputável, muitos outros acharam que podiam viver acima (e em cima) das nossas possibilidades.
E o que dizer de Luís Filipe Vieira? O empreendedor, afinal, era um reestruturador encartado que passou as últimas décadas fugindo ao crédito malparado através de benevolentes reestruturações de dívidas. O segredo é simples: se a dívida for grande o problema é do banco! E os bancos (com o BES à cabeça) sempre aceitaram com benevolência esta fuga para a frente, uma mão lava a outra e no final até há uns bilhetes para ver a bola. Quando já não dava para fintar a conta e a fatura chegou à mesa, foi ao Estado que vieram pedir a solução.
Berardo foi entronizado como o curador do Estado, o comendador que tutelava a exposição na principal montra do país. Luís Filipe Vieira foi mais popular, mas não menos eficaz – atirou ao coração e usou as emoções futebolísticas para desbloquear problemas e abrir horizontes. E é ver a lista de governantes, políticos, destacados membros da sociedade que, a cada candidatura, se acotovelavam para colocar o seu nome na lista de apoiantes de Vieira para o Benfica. Afinal, a promiscuidade entre política e futebol também tem pessoas de carne e osso e atos que ficam registados na história.
Nem falo dos deputados que privavam diretamente com Luís Filipe Vieira – com outro qualquer, André Ventura já teria esgotado a palavra “Vergonha!” – e que mostram claramente como só apontam o dedo quando lhes convém. Falo de todos os outros que confundem as águas entre o adepto e o decisor político ou público. É esse lado sensível que Vieira procurou explorar – e outros como ele, que a crítica é geral e não conhece clube. Vieira também é fruto de um sistema que lhe permitiu prosperar, mesmo arruinando negócio atrás de negócio.
Hoje está exposta ao ridículo a lengalenga que nos foi vendida: A meritocracia é, tão só, o acesso fácil a decisores; o empreendedorismo é a arte do endividamento e da reestruturação das dívidas; a defesa de centros de decisão nacionais é a proteção de uma elite parasitária que vive de rendas e privilégios; o dogma da livre concorrência é a disputa de favor na privatização de monopólios naturais pelo Estado; a justa repartição de esforços entre empresas e famílias é a permissão de engenharias fiscais e criação de vias verdes para os offshore; a independência dos reguladores é a submissão aos interesses económicos e financeiros instalados.
A Berardo ou Vieira (e aos outros!), faça-se justiça – e, pelo caminho, recupere-se o dinheiro que nos devem. Mas se queremos mesmo impedir que estes escândalos se repitam, temos de mudar o sistema
As recentes detenções não foram das maçãs podres que colocam em causa a qualidade do cesto, são as peças de fruta que deixaram cair para tentar manter o resto do cesto intocado. Para não repetirmos os mesmos erros, temos de levar até ao fim o combate a este sistema de “gangsterismo” financeiro – este é o grande desafio.
A Berardo ou Vieira (e aos outros!), faça-se justiça – e, pelo caminho, recupere-se o dinheiro que nos devem. Mas muitos dos que agora se indignam, atestavam há meses a inutilidade das Comissões Parlamentares de Inquérito, votaram contra o reforço da fiscalização do sistema financeiro, rejeitaram muscular o combate aos offshore, procuraram impedir o levantamento do sigilo bancário para investigações judiciais ou deixaram alçapões nas leis para dificultar o combate à promiscuidade entre o público e o privado. Se queremos mesmo impedir que estes escândalos se repitam, temos de mudar o sistema.
Artigo publicado no jornal “Público” a 9 de julho de 2021
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