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Os Estados Unidos estão de volta a quê?

O que se observa é a recuperação do princípio de que a interlocução com os EUA obriga ao seguidismo dos EUA. O desconforto de várias chancelarias europeias é evidente.

A recente cimeira da NATO, em Bruxelas, levantou em aplauso a plateia dos “transatlânticos”, desmoralizados desde que Trump os votou à orfandade. Que os Estados Unidos estavam de volta foi o anúncio de Joe Biden. Mas de volta a quê? Segundo as intenções expressas, a uma liderança mundial (sic) que considere os seus aliados. A NATO, tão criticada por Trump por ser obsoleta e barata para os parceiros, passa a estrela do espaço político “ocidental”, numa nova versão do conflito Leste/Oeste. Agora o inimigo é a China, o inimigo secundário é a Rússia e os inimigos avulsos são todos os que possam estar sob a influência destas. Este novo conceito estratégico da NATO sucede à “guerra ao terrorismo” que, por sua vez, já tinha substituído os alvos da “Guerra Fria”, o Pacto de Varsóvia e semelhantes.

A identificação da China como inimigo principal de uma organização militar com encargo de intervenção à escala global, como se define hoje a NATO, obriga a algumas perguntas simples: que atos de hostilidade militar foram desencadeados pela China nas últimas décadas que permitam classificar a sua política como hostil e pré-agressora dos territórios de Estados da NATO ou de países terceiros? Fraca resposta será, certamente, apontar o dedo às habituais manobras militares ou às exibições de força no Mar da China. Que dizer então dos constantes exercícios militares da NATO ou dos seus membros por todo o mundo? Ou das intervenções militares diretas e sucessivas no Médio Oriente, em especial dos EUA?

A NATO pode alegar o crescimento das despesas militares da China. Porém, o acréscimo das despesas militares dos Estados Unidos e seus aliados é muitíssimo superior. Aliás, todas as despesas militares atuais não têm paralelo na história da Humanidade. No caso da Rússia, remetida a inimigo secundário, a NATO ainda poderia especular com a anexação da Crimeia pela Rússia, não muito diferente do que os EUA fazem na Colômbia ou como retaguarda de uma das fações da Ucrânia, afinal o mesmo que os EUA fazem na Venezuela. Os EUA podem até alegar que a intervenção russa no Médio Oriente lhes causa tanta fadiga como a sua própria. Mas não, não é a Rússia o alvo preferencial da aliança militar agressiva que se constituiu pelo Tratado do Atlântico Norte.

A explicação lógica da nova afetação de forças para barrar a China é, como toda a gente sabe, de caráter económico, tal como outras rivalidades entre potências que, no passado, ditaram duas guerras mundiais. Os EUA, enquanto potência hegemónica, querem impedir a ascensão comercial, tecnológica, industrial e financeira da China. É desse molde que saem as novas coordenadas da NATO. Ao mesmo tempo, ameaça-se a Rússia para a neutralizar e tentar impedir qualquer avanço em acordos sino-russos. Esse foi o gesto de Biden na Cimeira de Genebra com Putin. A prorrogação do Acordo START sobre contenção de ogivas e bombardeiros nucleares não inclui nenhuma redução dos arsenais e é temporária, à espera da definição chinesa sobre este tipo de acordos, pesem os perigos da posse de armas nucleares (que ambas as potências reconheceram).

Depois do protofascista Trump ter caído, ele que nem hesitou na tentativa de um golpe de Estado, esperava-se na Europa outra coisa de Biden, outra perspetiva, que muitos misturam na imprecisa expressão “multilateralismo”.Uma espécie de Obama menos tímido no desanuviamento internacional. Quem tivesse a ilusão de que surgiria um tempo de distensão, de acordos para desarmamento, de diálogo para pactos de desmilitarização de teatros de conflito, de redução proporcional da despesa militar, enganou-se. O chamado multilateralismo tem tido várias interpretações, a mais benévola e plural desembocaria num mundo multipolar e convergente. Não é isso que está à vista. O que se observa é a recuperação do princípio de que a interlocução com os EUA obriga ao seguidismo dos EUA. O desconforto de várias chancelarias europeias é evidente.

Tenho, nesta análise, a facilidade de ter amiúde condenado violações de Direitos Humanos, praticadas por todos, China, Rússia e EUA. E olho com estupefação para o bloco central da política portuguesa, que colocou a China no pedestal e lhe entregou a propriedade de recursos de soberania e segurança nacional (as barragens e a rede de alta tensão), para não falar na banca, seguros, saúde, imobiliário. É esse bloco central que se apressa a saudar Biden e o rasto mecânico da NATO. Não podem é dizer-nos que os EUA são parceiros e a China é “amiga”, ou vice-versa.

Para esconder que o interesse da hegemonia económica (e do dólar) está por detrás da força da hegemonia militar, Biden justificou o novo conceito estratégico da NATO em nome das democracias contra os regimes autoritários. Descontando o critério seletivo e hipócrita das recomendáveis democracias – que as leva a ter do seu lado os regimes dos petrodólares com ditaduras brutais –, a reivindicação da “democracia universal” é o regresso inesperado da doutrina Bush.

Do saudado regresso dos EUA ao Acordo de Paris fica um enorme ponto de interrogação: EUA e China vão cooperar para tornar efetivo o cumprimento do Acordo e ir mais além para colmatar as suas insuficiências? Ou vão usar o conflito como diálogo de surdos na globalização do capitalismo carbonizado?

As invasões “democráticas” do Afeganistão e do Iraque produziram aqueles exemplos de barbárie que aí vigoram, com fundamentalistas e sem eles, à custa de milhões de mortos. O controlo de petróleo e de outros negócios alimentou as bolsas americanas no seu sobe e desce. Sob o impulso de Bush e dos neocons, a “exportação” das democracias levou a um suposto direito de intervenção noutros países, em guerras não declaradas, em ações frontalmente contra a Carta das Nações e o Direito Internacional.

Já nem se contextualizam aqui os falsos pretextos para as intervenções. Nada nos move contra auxílios humanitários, sob proteção militar, sob os auspícios da ONU. Lamentavelmente, isso também foi instrumentalizado e serviu como biombo para tentativas de controlo de Estados. Basta olhar para o caos da Líbia. As intervenções para derrubar governos são violações grosseiras do Direito Internacional. Nada pode substituir a luta dos povos pela sua autodeterminação e acesso à democracia. Mesmo que a vontade democrática fosse genuína (e essa vontade, tal como as armas de destruição maciça, nunca foi encontrada), as democracias não nascem como protetorados de potências. O “nosso” 25 de abril não deveu nada à NATO que, por sua vez, conviveu bem com a ditadura colonial-fascista.

Do saudado regresso dos EUA ao Acordo de Paris fica um enorme ponto de interrogação: EUA e China vão cooperar para tornar efetivo o cumprimento do Acordo e ir mais além para colmatar as suas insuficiências? Ou vão usar o conflito como diálogo de surdos na globalização do capitalismo carbonizado?

Biden falhou a notícia a Guterres. De facto, não voltou à Carta das Nações.

Artigo publicado no “Público” a 6 de abril de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
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