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Berardo não é passado

Passaram anos, o Mundo mudou, as elites portuguesas também. Os olhos ainda se viram, de novo e sempre, para a Justiça. Mas o sistema que produziu tudo isto não mudou.

Em maio de 2019, Joe Berardo explicou à comissão de inquérito parlamentar que não tinha património nem dívidas e, entre risos, gabava-se de ter posto a coleção de arte a salvo dos credores.

Há quem pense que Berardo, como outros, fez pouco do Parlamento. Não duvido que fosse essa a sua intenção. Mas todos os que então aproveitaram para contestar a importância destas comissões viram o tiro sair-lhes pela culatra.

O país sabe hoje que é verdade o que dissemos sobre os donos de Portugal. As suas fortunas vieram de rendas e privilégios que o Estado lhes concedeu, no acesso a monopólios privatizados, nos contratos leoninos das PPP ou da eletricidade, nas facilidades fiscais ou na valorização de coleções de arte. Corrupção? É mais do que provável. Mas o Governo de Sócrates não foi o único a proteger este regime de parasitismo, que se alimentou de portas giratórias, de jeitinhos e favores e, é claro, de muita propaganda do "mercado livre".

O século tinha virado e as elites vibravam com um mundo de negócios sem limites. Lá vinha o enredo da meritocracia e dos centros de decisão nacionais. A geração do "Compromisso Portugal" queria dar cartas, e deu. Com elas construíram castelos e fortificações em infinitas guerras de poder, financiadas com o crédito da Caixa, do BES e do BCP. Berardo foi um joker deste jogo. A origem da sua suposta fortuna nunca foi clara, mas foi o Estado que lhe deu a reputação, ao valorizar a coleção Berardo no CCB e ao atribuir o estatuto de IPSS à Fundação Berardo, que nunca pagou IRC. A Banca emprestou-lhe mil milhões de euros e fez dele acionista do BCP. Quando Berardo estava prestes a entrar em incumprimento, a Caixa ainda lhe concedeu mais 38 milhões, a juntar aos outros 315 milhões.

Foram vários os contratos como os que Berardo fez: os juros, muito favoráveis, seriam pagos com os dividendos anuais das ações; o capital seria pago no final do prazo com a receita da venda das mesmas ações. Claro que um tropeção na Bolsa bastaria para apagar o brilho da especulação. E assim foi: os dividendos secaram, as ações não valiam nada e todos já teriam falido há dez anos, não fossem as generosas reestruturações dos bancos, que tentaram encobrir estes créditos fraudulentos. Pelo caminho, esta elite destrutiva engoliu algumas das pérolas da economia portuguesa (PT, Cimpor, etc.).

Uma década é tempo mais que suficiente para esconder património em fundações e offshores, para desnatar empresas e esconder coleções de arte. A fanfarronice tramou Berardo, mas falcatruas semelhantes foram usadas por quem continua a afirmar não ter património nem dívidas.

Passaram anos, o Mundo mudou, as elites portuguesas também. Os olhos ainda se viram, de novo e sempre, para a Justiça. Mas o sistema que produziu tudo isto não mudou. Quando se acendem as luzes do sucesso sobre grandes empresários de mérito, estamos obrigados a garantir que não os teremos mais à frente, fanfarrões, a rir dos portugueses.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 6 de julho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
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