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O mundo de Joe

O mundo de Joe é uma garagem. Uma garagem sita no Funchal, o único bem que a CGD encontrou quando quis executar o empresário madeirense.

"Se eles (CGD) quiserem levar a garagem, podem levar", ironizava Joe Berardo em Maio de 2019, perante a comissão de inquérito parlamentar onde exibiu o desplante que muitos outros "donos disto tudo" já ostentaram mas, convenhamos, nenhum outro conseguiu marcar em superior gozo e nota artística. Berardo não é só um colecionador de arte. Um dos mais facilmente decifráveis chicos-espertos do país, é todo ele circense, histriónico mesmo que vista de preto, um impostor de simpatia, quase 77 anos medicados que não o impediram de usar (e de se gabar) das maiores artimanhas sobre como guardar para si a fortuna com que empobreceu tanta gente, enquanto desfazia o sistema bancário em conluio com a sua rede de cumplicidades.

O facto de se exibir como intocável, sem pingo de perspectiva crítica ou de arrependimento, não o diferencia de nenhum dos seus pares. Não tenhamos ilusões de que há piores ou melhores no quadro de bandalhos que fez ruir o sistema financeiro, fechando os olhos ou metendo a mão. Todos eles, sem excepção, gozaram do seu período de inimputabilidade, da ideia magna de que passariam inevitavelmente pelos pingos da chuva, a exemplo do que acontecera com tantos outros que os precederam. Por que razão haveria de ser diferente com eles? Por causa do "volume excessivo dos negócios"? Negócios são negócios, onde muito conta o segredo e a arte de colocar a alma ao serviço. Vender a alma, se preciso for. Quem tramou Joe Berardo é menos importante do que saber quem o financiou. Ao comendador, planeador de risco, está afinal reservado um final de vida de surpresas. Se é apreciador de arte, só pode admirar este volte-face.

Infelizmente, é pouco sustentada a ideia de que Joe goze de real fruição artística. Berardo investe. Compra e vende, "cash&carry". Só não vende se não pode, como quando terá tentado dissipar 200 milhões de euros para a Associação Coleção Berardo em 2018, pela venda de 16 dos seus mais valiosos quadros em Londres, tentativa travada pelo então ministro Luís Castro Mendes. Detido por suspeita de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal, falsificação, branqueamento de capitais, falsidade informática, abuso de confiança, descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, tendo lesado a CGD, Novo Banco e BCP (e todos nós, portanto) em quase mil milhões de euros, Joe Berardo é o artífice da frase que o há-de acompanhar em lápide popular: "Eu, pessoalmente, não tenho dívidas". No meio de tanta arte com a qual nada aprendeu, julgando-se maior do que o universo e melhor do que o comum dos mortais, o mundo em que Joe Berardo vive é mesmo o de uma garagem.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 2 de julho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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