Plataformas digitais e o patrão-algoritmo: o que vai fazer o PS?

porJosé Soeiro

26 de June 2021 - 12:33
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O pontapé de saída para uma lei que enquadre o trabalho subordinado nas plataformas digitais está dado, com um projeto em cima da mesa desde o início da semana. E agora, o que vai o Governo fazer? O PS vai ceder de novo ao lóbi das plataformas e à chantagem dos patrões na concertação social?

O pontapé de saída para uma lei que enquadre o trabalho subordinado nas plataformas digitais está dado, com um projeto em cima da mesa desde o início da semana. O Governo fez também anúncios nos últimos dias, embora ainda sem concretização.

Não há como ignorar a realidade. As plataformas digitais introduziram uma grande transformação nos modos de organizar, regular, controlar e gerir o trabalho. Essa transformação tem de ter uma resposta que proteja quem trabalha. Recorrendo à aparência de que, do outro lado da atividade que o trabalhador presta, se encontra não uma empresa, mas um algoritmo, mero mediador entre consumidores e “prestadores de serviços”, as plataformas digitais, nomeadamente as de transporte de passageiros e entrega de comida (mas não só!) têm vindo a atirar um número crescente de trabalhadores para fora das regras básicas do direito do trabalho, como a existência de limites de horário de trabalho, remunerações mínimas, direito a férias, proteção em caso de acidente ou de desemprego. Em Portugal, são já mais de 80 mil os que fazem do trabalho nas plataformas a sua atividade principal ou única. Sem direitos.

O algoritmo manda, mas não tem responsabilidades?

Em todo o mundo, o argumento das plataformas para se desobrigarem de quaisquer responsabilidades contratuais com os trabalhadores é o mesmo: uma atividade gerida por um algoritmo, alegam, não é um trabalho por conta de outrem e por isso não deve haver contratos. A favor desta perspetiva, evocam a ausência de um horário de trabalho formalmente definido, a inexistência de um dever de pontualidade ou assiduidade, ou o facto de alguns dos instrumentos de trabalho não pertencerem às empresas mas aos trabalhadores (a bicicleta do estafeta, por exemplo)… O que a sua narrativa omite é que, ao contrário do que acontece com verdadeiros trabalhadores independentes, que definem os horários em que realizam o seu serviço, que negoceiam o preço diretamente com o cliente, que aceitam e recusam trabalho livremente sem qualquer consequência, que não estão inseridos em nenhuma organização, com os motoristas da Uber ou os estafetas da Glovo, da UberEats ou outra qualquer plataforma, não é isso que acontece.

Para quem entrega comida, por exemplo, é a plataforma que permite o acesso aos clientes e, portanto, à atividade; é a plataforma que distribui a atividade; é a plataforma que atribui a tarefa e que define o momento em que deve ser realizada; é a plataforma que fixa os preços e os critérios; é a plataforma que define unilateralmente os critérios de avaliação que serão disponibilizados aos clientes; é a plataforma que paga ao trabalhador, não o cliente. A plataforma tem então, através da gestão algorítmica da atividade, os poderes de uma entidade patronal: organiza o trabalho, fixa preços, processa pagamentos, controla o trabalhador (até através de geolocalização permanente), submete-o a uma avaliação e goza até de poderes disciplinares e de sanção que vão até ao despedimento (ou, na novilíngua das plataformas, à “desativação dos parceiros”).

Um movimento internacional contra a ausência de contratos

É isto que está em jogo. Pode uma plataforma ter um negócio que depende do trabalho de outros e ter todos estes poderes de empregador, sem ter as responsabilidades correspondentes? Deve a lei autorizar esta ficção? Deve continua a caucionar este esquema legal, que permite uma extraordinária acumulação de lucros por parte das plataformas, feita à custa de se subtraírem às obrigações legais do direito do trabalho e de fazerem um verdadeiro dumping social e fiscal, através de uma concorrência desleal face aos sectores da economia e às empresas que se submetem àquelas obrigações? Até quando vamos conviver pacificamente com um enorme exército de estafetas e motoristas sem salário mínimo, sem férias remuneradas, sem acesso a pensões, sem possibilidade prática de gozarem uma baixa por doença, sem estarem protegidos em caso de acidente, sem nenhum limite de horas de trabalho, sem qualquer direito de representação coletiva?

Felizmente, noutros países, alguns tribunais têm dito rotundamente que não a este engodo. Na Itália, o tribunal de Palermo, no final de 2020, qualificou um estafeta da Glovo como trabalhador subordinado. Em fevereiro de 2021, seguindo as mesmas orientações, a inspeção de trabalho italiana determinou que as plataformas de distribuição de comida deveriam fazer contratos de trabalho e reconhecer a relação de subordinação jurídica a mais de 60 mil estafetas. No Reino Unido, em fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal deliberou a favor dos trabalhadores, dando razão a uma decisão de um tribunal londrino que tinha reconhecido o contrato a 40 mil motoristas da Uber, e determinou que esta plataforma seria responsável por garantir aos condutores proteção social no trabalho, incluindo salário mínimo e pagamento de férias. Em 25 de setembro de 2020, também o Supremo Tribunal de Espanha deu razão aos trabalhadores da Glovo, determinando que estes eram trabalhadores subordinados, devendo por isso a plataforma estabelecer contratos de trabalho por conta de outrem. Esta decisão contribuiu para que, em maio deste ano, o Governo de Espanha tenha aprovado a chamada “Lei Rider”, que se aplica aos estafetas e define condições que obrigam ao reconhecimento da relação laboral subordinada com a plataforma.

Portugal vai continuar a ser o paraíso do “modelo Uber”?

Em Portugal, não tivemos ainda nada disso. As multinacionais encontraram no nosso país um paraíso para o seu “modelo de negócio”, levando ao extremo este mecanismo de invisibilização jurídica do trabalho que é feito nas plataformas (como se fossem serviços prestados por empresas ou independentes) e a exploração de uma força de trabalho permanentemente disponível, mas da qual as plataformas só fazem uso quando necessário e só remuneram pela estrita realização de cada tarefa. Conseguiram, aliás, que o Governo fizesse uma lei à medida da Uber no que aos motoristas diz respeito. Aprovada em 2018, por acordo entre PS, PSD e CDS, a lei é caso único no mundo (pela negativa!) por introduzir - para além do trabalhador, da plataforma e do cliente - um quarto sujeito, o “operador de TVDE”, cuja razão de existência é isentar as plataformas (Uber, Bolt, Free Now e It's my Ride) de quaisquer compromissos laborais, porque pela lei estão proibidos os contratos entre motoristas e plataforma e é obrigatória a intermediação do tal “operador de TVDE”.

O caso é tão escandaloso e choca tão de frente com o que têm decidido tribunais de outros países, que o próprio Governo veio esta semana abrir a possibilidade de “eliminar este intermediário”. Em si mesmo, isso não significa garantir contratos, mas é o reconhecimento de que a lei que foi feita não podia ser. Resta agora saber como vai ser concretizada, também para os estafetas, a tal “presunção de laboralidade”, que os coordenadores do Livro Verde inscreveram no documento e que já suscitou a ira das confederações patronais.

Presunções de laboralidade” há muitas

É que presunções há muitas e depende do quanto se quer apertar a malha. Se a dita "presunção" não for bem calibrada, pode ser apenas verbo de encher sem qualquer consequência prática. Infelizmente, o PS deu mostras, no anterior processo de alteração à lei do trabalho, que é capaz das mais criativas soluções. Na altura, o anúncio da limitação nos contratos a prazo foi acompanhado pelo aumento do período experimental e dos contratos de muito curta duração. A precariedade que se fazia sair pela porta, entrava assim pela janela, anulando umas normas o efeito das outras.

E agora, o que vai o Governo fazer? O PS vai ceder de novo ao lóbi das plataformas e à chantagem dos patrões na concertação social? Ou vai querer aprovar uma lei que os enfrente e proteja os trabalhadores? Se optar pelo segunda hipótese, há um trabalho que já começou a ser feito. Esta proposta concreta pode bem ser a base desse caminho comum.

Artigo publicado em expresso.pt a 25 de junho de 2021

José Soeiro
Sobre o/a autor(a)

José Soeiro

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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