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Resiliências

Está a chegar dinheiro a rodos da União Europeia, dizem que para garantir a nossa resiliência. Pois bem, tanto dinheiro é uma oportunidade única para mudar as vidas destes grupos e de todas as pessoas que têm estado a vida inteira a recuperar de adversidades.

Vou ao dicionário e encontro: “Resiliência (subst. fem.): propriedade de um corpo recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação; capacidade de superar, de recuperar de adversidades.”

Como em tantas outras palavras da moda, na resiliência cabe tudo e o seu contrário. Pois é: o problema da resiliência é que não há choques e adversidades em abstrato, nem há propriedades e capacidades gerais. Por isso, falar de resiliência geral do país é usar um biombo para esconder as diferenças entre os/as resilientes. Para pensar e falar com rigor, tem de se assumir que a resiliência de um país são as resiliências diferenciadas dos homens e mulheres concretos que o constituem.

Há a resiliência dos de baixo e a resiliência dos de cima. Para os de baixo, resiliência é uma palavra perfumada e tecnocrática usada em vez do grosseiro “ai aguenta, aguenta” do banqueiro. Gente cuja vida é um quotidiano feito de choque, deformação e adversidade – gente para quem a resiliência como “propriedade de recuperar a forma original” é voltar sempre à casa de partida que é de agrura e dificuldade. Há outra resiliência, a dos de cima, a que se concretiza em cálculos de excel do ajustamento do número de “colaboradores” que a empresa “tem de dispensar” para se adaptar às exigências da crise, ou seja, para que a margem de lucro e de acumulação não diminuam.

as pessoas mais velhas, as pessoas ciganas e de outras minorias étnicas, as crianças e jovens vítimas de violência, negligência e abandono e as pessoas com deficiência viram os seus direitos, já de si frágeis na nossa realidade comum, ser seriamente fragilizados num quadro geral de restrição de direitos fundamentais

O Observatório Permanente da Justiça (OPJ), do Centro de Estudos Sociais, elaborou um estudo detalhado, para integrar o Relatório dos Direitos Fundamentais de 2021” da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, sobre os impactos da pandemia de COVID-19 no cumprimento dos direitos fundamentais. Nesse estudo sobre a realidade portuguesa, o OPJ avalia os impactos da pandemia nos direitos fundamentais de grupos sociais especialmente vulneráveis. E mostra que as pessoas mais velhas, as pessoas ciganas e de outras minorias étnicas, as crianças e jovens vítimas de violência, negligência e abandono e as pessoas com deficiência viram os seus direitos, já de si frágeis na nossa realidade comum, ser seriamente fragilizados num quadro geral de restrição de direitos fundamentais.

Esses são os grupos sociais em que a fragilidade dos direitos atinge maior expressão. Mas, sempre que há uma crise – financeira, ambiental, sanitária – a perda de espessura dos direitos é a realidade de todos de baixo. Eis o retrato da resiliência forçada que é a constante histórica da sociedade portuguesa.

Está a chegar dinheiro a rodos da União Europeia, dizem que para garantir a nossa resiliência. Pois bem, tanto dinheiro é uma oportunidade única para mudar as vidas destes grupos e de todas as pessoas que têm estado a vida inteira a recuperar de adversidades. Se não criar condições estruturais para terminar com essa condição de adversidade permanente, a bazuca será uma simples pressão de ar. E a resiliência continuará a ser a palavra chique para designar a luta diária pela sobrevivência da grande maioria.

Artigo publicado no diário “As Beiras” a 22 de junho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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