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Um passo em frente

Está aberta a porta à legalização da canábis para uso pessoal no processo que agora se iniciou no parlamento. Sejamos capazes de dar mais este passo de progresso.

A ciência é destruidora de dogmas. As suas grandes vítimas históricas, os conservadores, somam derrotas que são já incontáveis – no entanto, ainda resistem em luta contra as evidências. Pode não ser à primeira, pode muitas vezes questionar o senso comum de forma completamente contra intuitiva, pode até enfrentar resistências que durem inúmeros anos, mas a história demonstra como a ciência acaba por se afirmar.

Portugal teve momentos em que soube evoluir com a ciência para ser um modelo no mundo. Um exemplo disso ocorreu há 20 anos: contra todas as posições internacionais e as oposições conservadoras, mudou-se o paradigma na forma como a sociedade encarava os consumidores de drogas. Rejeitamos o seguidismo dos modelos que os perseguiam e construímos um novo modelo com a descriminalização da aquisição, posse ou consumo. Os resultados foram extraordinários, reduzindo as mortes associadas ao consumo de estupefacientes, o nosso país virou caso de estudo internacional pelo sucesso do novo paradigma. O modelo proibicionista sofreu uma pesada derrota.

Foi com um agendamento potestativo do Bloco de Esquerda que a Assembleia da República lançou a discussão em 2000. Os argumentos do contra eram batidos, sem grande imaginação, e procuravam cavalgar o senso comum mundial e o medo social: Paulo Portas jurava que haveria “aviões cheios de estudantes para fumar marijuana e coisas piores”, enquanto Durão Barroso repetia pelo país que a reforma era “insensata e perigosa” porque tornar-se-ia “muito difícil para as autoridades policiais interceptar alguém na rua na posse de droga”. Ambos propuseram um referendo que ninguém quis fazer. Entre os charters de drogados que iriam invadir o país e o perigo de uma polícia desarmada frente aos traficantes, a realidade mostrou como eram falsos os vaticínios – a oposição de direita mentia sobre o futuro para impor o seu conservadorismo.

É na esteira deste caminho inovador, que trouxe sucesso ao nosso país, que se debate a legalização da canábis para uso pessoal. Apesar da legalização da canábis para uso medicinal em 2019, com benefícios para a saúde pública e para a economia do país, o consumo recreativo ainda é rejeitado pela lei. Mas há muita vida para lá da lei: o consumo de canábis em Portugal é dos mais elevados na Europa, segundo o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT).

A realidade mostra a impotência do modelo proibicionista, insistir nele é uma hipocrisia que mantém problemas graves: atira os usuários para as mãos de um mercado negro, muito lucrativo e explorado pelo crime organizado, e não garante qualquer controlo sobre a qualidade das drogas, o que se transforma num perigo de saúde pública. Aliás, o OEDT refere que o consumo de neocanabinóides adulterados provocou 20 mortes em 2021 e um aumento de situações que obrigaram a tratamento hospitalar.

Hoje, além de opiniões pessoais que existam, há realidades com as quais podemos aprender: Uruguai, Canadá e 16 estados dos EUA já permitem o uso recreativo da canábis. E os resultados são muito positivos

Em duas décadas, a direita conservadora, apesar de derrotada pela realidade, insiste em preconceitos ou ideias feitas, como se viu no debate parlamentar. E mostram como a opinião sobre a canábis é mais moralista do que científica: há outros produtos que contêm substâncias psicoativas cujo uso recreativo é legal e até publicitado, sendo mesmo as drogas mais consumidas do planeta – as bebidas alcoólicas, as bebidas estimulantes (café, chá e energéticos) ou o tabaco. Como no passado, esta direita conservadora não faz parte do progresso e fica ao lado de quem quer tudo como está: os narcotraficantes.

Hoje, além de opiniões pessoais que existam, há realidades com as quais podemos aprender: Uruguai, Canadá e 16 estados dos EUA já permitem o uso recreativo da canábis. E os resultados são muito positivos, particularmente no combate à criminalidade organizada e na salvaguarda da saúde pública – e com vantajosas receitas fiscais.

Está aberta a porta à legalização da canábis para uso pessoal no processo que agora se iniciou no parlamento. Sejamos capazes de dar mais este passo de progresso. Kofi Annan deixou o mote: “É tempo de percebermos que as drogas são infinitamente mais perigosas se deixadas nas mãos de criminosos que não têm qualquer preocupação com saúde e segurança.”

Artigo publicado no jornal “Público” a 11 de junho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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