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As vacinas serão interesse comum, finalmente

É do coração do capitalismo que surge a notícia que tira o tapete ao dogmatismo ideológico. Que desta vez fale mais alto a defesa da vida do que a defesa do lucro.

Há menos de um mês foi debatida na Assembleia da República uma proposta sobre o levantamento das patentes das vacinas contra a covid-19. A recomendação pretendia que Portugal defendesse, na União Europeia e nas várias instâncias internacionais, as vacinas como um bem público e universal. Deve ter sido estranho a quem acompanhou o debate perceber que os motivos para a rejeição da proposta nada tinham que ver com questões de saúde pública, antes radicavam em argumentos ideológicos sobre o sacrossanto funcionamento do mercado.

Nesse momento, o Brasil era preocupação mundial e na Índia já se vislumbrava a formação da tempestade pandémica perfeita, mas a dura realidade não conseguiu furar a ideologia. Na canhestra tentativa de reduzir as opiniões a uma batalha entre capitalismo e socialismo, o grito “deixem as farmacêuticas em paz” juntou os votos de PS, PSD, CDS, Iniciativa Liberal e Chega para chumbar a iniciativa. Essa coisa do levantamento de patentes das vacinas, diziam, era coisa de radicais.

Nem um mês passou e é do coração do capitalismo que surge a notícia que tira o tapete ao dogmatismo ideológico: Katherine Tai, a representante do Comércio Externo dos EUA, disse que “esta é uma crise de saúde global e as circunstâncias extraordinárias da pandemia covid-19 exigem medidas extraordinárias”, e anunciou que o país defenderá na Organização Mundial do Comércio (OMC) a suspensão temporária das patentes das vacinas. A motivação é óbvia: a situação pandémica à escala global está a piorar e é uma ameaça mundial. Contudo, ainda falta passar a proposta na OMC e garantir que seja acompanhada pela necessária transferência de conhecimento. Para isso, é preciso que a União Europeia também mude de posição e não seja um entrave a esta suspensão – esta é mais uma humilhação pública internacional da União Europeia na gestão da pandemia, sempre na cauda das grandes decisões e a reboque de outros. Foi preciso a Administração Biden assumir o levantamento das patentes para Von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, afirmar que “a UE está pronta a discutir a proposta dos EUA”.

Os urros das grandes farmacêuticas seguiram-se rapidamente ao anúncio dos EUA. Stephen J. Ubl, presidente da associação norte-americana das farmacêuticas, já começou com as ameaças e a disseminação do medo: “Esta decisão vai enfraquecer ainda mais as cadeias de abastecimento já tensas e promover a proliferação de vacinas falsas”, disse, acrescentando que a medida teria o efeito de “entregar as inovações americanas aos países que procuram minar a nossa liderança na descoberta biomédica”. É a visão de quem não enxerga para lá do seu umbigo, colocando a indústria à frente das necessidades da humanidade.

A evolução da pandemia e a proliferação de novas variantes mostrou que ninguém está protegido enquanto todos não estivermos protegidos. Há sempre uma mutação à espreita que ameaça a eficácia das vacinas e levar-nos de novo à estaca zero. A velocidade com que se conseguiu criar várias vacinas contra a covid-19 foi excepcional, mas o atraso na produção e distribuição pode colocar em causa esse esforço. A vacinação global é uma urgência, interessa a todos os países e povos e, para isso, é essencial suspender as patentes das vacinas contra a covid-19 e intensificar a sua produção, garantindo um acesso rápido e universal.

Não estamos condenados a falhar - o levantamento das patentes e a transferência do conhecimento podem garantir a massificação da produção de vacinas e a sua distribuição célere à escala mundial

Todos estamos em choque com as imagens e relatos que chegam da Índia, o caos nos hospitais, as mortes e o total descontrolo da pandemia. Esta tragédia não poderia ter sido evitada se, em outubro passado, a proposta feita na OMC pela própria Índia e mais 80 nações para o levantamento temporário das patentes das vacinas tivesse sido aceite? E teríamos ido a tempo de evitar que a estirpe indiana se transformasse numa ameaça global.

Há semanas, António Guterres deu voz à desumanidade que representa a atual escassez e distribuição de vacinas: “Apenas dez países administraram mais de 75% de todas as vacinas covid-19, enquanto dezenas de países não receberam uma única dose.” Não estamos condenados a falhar - o levantamento das patentes e a transferência do conhecimento podem garantir a massificação da produção de vacinas e a sua distribuição célere à escala mundial. Que desta vez fale mais alto a defesa da vida do que a defesa do lucro.

Artigo publicado no jornal “Público” a 7 de maio de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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