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A pandemia, a jorna, o parque natural e o negócio acima de tudo

A situação dos trabalhadores rurais em Odemira não era um desastre à espera de acontecer. Já aconteceu, está a acontecer há muito tempo. O Governo conhece tão bem a situação que em 2019 autorizou a colocação de contentores para alojar trabalhadores no Perímetro de Rega do Mira.

Lembro-me de ter uns 14, 15 anos e apanhar o autocarro que faz o percurso Lisboa - Lagos. No Inverno, as únicas pessoas que o apanhavam iam visitar a família, vinham a consultas a Lisboa, dois pares de turistas de mochila às costas e grupos de 5 ou 6 pessoas lideradas por uma espécie de capataz. Chamo-lhe capataz porque ele falava e os outros seguiam-no. Era o único que falava português. Não era sempre o mesmo, mas cheguei a ver várias vezes o mesmo "capataz". Durante a viagem, fazia vários telefonemas em que falava tanto em inglês, como em português, reportando por onde passávamos. Eu saía sempre em Milfontes. O grupo seguia viagem. Sempre presumi que até São Teotónio. Era miúda e achava aquilo estranho, não só pela clara relação hierárquica no grupo, mas também porque até então nunca me tinha cruzado com uma regularidade tal, naquele percurso, com pessoas de origem asiática que pareciam condenadas ao silêncio.

Para quem passa pelo concelho com olhos de ver, não é preciso muito esforço para notar a escassez de serviços públicos

As estufas começaram a nascer como cogumelos, começaram a circular estórias de montes com dezenas de pessoas a partilhar um frigorígico, um quarto, o que fosse. Circulavam boatos de que a quem trabalhava nas estufas, lhes eram retirados os passaportes – rumores que felizmente nunca vi confirmados. Os anos foram passando e os montes isolados já não chegavam, certamente, para alojar a mão-de-obra quase escrava das estufas. Quando os trabalhadores migrantes começaram a habitar casas velhas nas vilas, tornaram-se mais visíveis. Alguns conseguiram sair da estufas e hoje encontram-se no concelho restaurantes e lojas de conveniência que alimentam as bocas das famílias migrantes. É generalizada a preocupação com a forma como os recursos e serviços do concelho não chegam para dar conta do boom populacional da região. Para quem passa pelo concelho com olhos de ver, não é preciso muito esforço para notar a escassez de serviços públicos. A última vez que precisei de assistência médica urgente, tive de conduzir 30km até à urgência mais próxima. Quem tira a carta em Milfontes, por exemplo, tem de ir fazer os exames a Beja – são 100km.

A par e passo, um dos nossos mais ricos tesouros – o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina – foi sendo coberto de plástico. No interior do concelho de Odemira, começou a ser óbvio que a agricultura intensiva estava a esgotar os recursos hídricos da região. Os danos ambientais foram mais mediatizados que a exploração dos migrantes. Várias associações e organizações ambientalistas denunciaram a destruição ambiental da região. Não só a população local se juntou às denúncias, nomeadamente quem mais disfruta das condições da região, como os surfistas, ou aqueles que fazem regularmente a pé a rota vicentina. Em Odemira, os jovens saíram à rua, organizando também lá a Greve Climática Estudantil.

No litoral, o dano ambiental parece mais gravoso que noutros sítios porque é também produto vendido – turismo rural, ecoturismo, etc. – mas o esgotamento de recursos é generalizado e a exploração dos trabalhadores é comum a toda a agricultura intensiva. No mesmo distrito (Beja), onde não há estufa, há olival intensivo, há trabalhadores migrantes a viver em condições deploráveis. Na Andaluzia, aqui ao lado, a situação é ainda pior.

Houve dois momentos pré-pandemia que nos deram conta da existência destes trabalhadores (para quem ainda não os conhecia): trabalhadores foram espancados em Beja e elementos da GNR de Milfontes foram acusados de sequestro e tortura de trabalhadores migrantes a mando do patrão da estufa. A destruição do ambiente está a ser feita através da exploração e da violência sobre gente. Esta gente é gente. Há relativamente poucas décadas atrás, antes do 25 de Abril, o Alentejo era palco da mesma exploração, só a cor da gente é que era diferente.

O Alentejo sem lei é isto: são dezenas de milhares de pessoas que nos põem comida na mesa, mas que não existem. Para o vírus é indiferente se fulano tal está recenseado. Tempos de crise são muitas vezes tempo que expõem realidades antes invisibilizadas

Com a pandemia, as condições insalubres em que se encontram estes trabalhadores resultou no óbvio: surtos. No Algarve, onde a produção de abacate começa a render (não é por acaso que em certos locais da América do Sul lhe chamam “ouro verde”), dezenas de trabalhadores ficaram confinados em escolas. Nem todos foram testados, mas não os autorizavam a sair. No litoral alentejano, Odemira parecia segura, mas o hospital, em Santiago do Cacém, começava a internar trabalhadores das estufas. A situação dos trabalhadores rurais em Odemira não era um desastre à espera de acontecer. Já aconteceu, está a acontecer há muito tempo. Sabe-o a Câmara Municipal, de Odemira e não só, sabe-o o Governo. Aliás, o Governo conhece tão bem a situação que em 2019 autorizou a colocação de contentores para alojar trabalhadores no Perímetro de Rega do Mira. Foi a própria “esquerda” do PS que ficou associada a esta inaceitável solução: Pedro Nuno Santos.

O Presidente da Câmara Municipal de Odemira chamou a atenção para o facto de o número de habitantes oficial no concelho ser muito inferior ao real, para efeitos de cálculos no que toca à situação pandémica no concelho. O Alentejo sem lei é isto: são dezenas de milhares de pessoas que nos põem comida na mesa, mas que não existem. Para o vírus é indiferente se fulano tal está recenseado. Tempos de crise são muitas vezes tempo que expõem realidades antes invisibilizadas. Quem desce a costa pode nunca ter reparado nos grupos de trabalhadores na berma da estrada, à espera da carrinha que os leva à estufa. Pode ter ido à praia da Amália e ignorado as mulheres e os homens que na torreira do sol vão a pé da estufa, ao pé da praia, até ao Brejão. Agora que um empreendimento turístico casual chique à beira da falência pode ser requisitado para alojar quem enche os sacos de salada da Vitacress da prateleira do Pingo Doce, estes trabalhadores, contraintuitivamente, tornaram-se de novo invisíveis. É mais “escandalosa” a requisição de um bungalow com pedigree que a epopeia que estes largos milhares de trabalhadores vivem, atravessando continentes para nos permitir comer morangos e framboesas. O Portugal do 25 de Abril não pode ser o Portugal que permite a exploração sem escrúpulos do Portugal fascista.

Como noutros locais do país, uma economia dedicada ao negócio fácil, apesar das gentes e apesar do ambiente, uma economia que serve uns poucos, à custa dos (e não de uns) tantos

A requisição de casas de férias podia ter sido evitada caso o governo tivesse agido mais cedo quanto à situação dos trabalhadores agrícolas no Alentejo, concedo que sim. Aliás, toda esta celeuma podia ter sido evitada se estes trabalhadores fossem, de facto, protegidos pelos direitos do trabalho e pelos direitos humanos – aqueles que o Expresso noticia estarem em perigo caso a requisição civil avance. Mas acima de tudo, o que toda esta polémica revela é uma profunda crise e clivagem sociais numa região que para muitos só existe na época balnear. Como noutros locais do país, uma economia dedicada ao negócio fácil, apesar das gentes e apesar do ambiente, uma economia que serve uns poucos, à custa dos (e não de uns) tantos; um país em que a “violação” do direito à propriedade é por muitos percecionado (e por vezes até legislado) como mais gravoso que a violação do direito à integridade, à dignidade da vida humana.

Sobre o/a autor(a)

Ativista anti-propinas, bolseira de investigação e dirigente do Bloco de Esquerda.
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