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A cambalhota do CDS na exclusividade dos deputados: ver para crer

Como confiar num sistema político que permite que as deputadas e os deputados eleitos para representar os interesses dos cidadãos eleitores, possam agir em nome de interesses económicos particulares, muitas vezes contra o interesse público?

É possível que um advogado esteja de manhã num qualquer escritório a defender interesses privados e à tarde no Parlamento a decidir sobre essa matéria? Sim. E é possível que esse mesmo deputado em regime parcial à tarde legisle em benefício do part-time da manhã? Sim. E isso é parte do problema.

A suspeita justificada sobre as motivações do poder legislativo não é uma dor aguda mas é um formigueiro que se vai instalando e minando a credibilidade do Parlamento. Como confiar num sistema político que permite que as deputadas e os deputados eleitos para representar os interesses dos cidadãos eleitores, possam agir em nome de interesses económicos particulares, muitas vezes contra o interesse público? E, sobretudo, como saber distinguir quando isso acontece?

Veja-se o caso de Isabel Galriça Neto, médica, Coordenadora da Unidade de Cuidados Continuados e Paliativos de um dos maiores grupos privados de cuidados de saúde a operar em Portugal e ex-deputada do CDS durante três legislaturas. Enquanto deputada pediu mais investimento público em cuidados paliativos ao mesmo tempo que o seu partido defendia menos Estado no sector da Saúde. Em nome de quem é que reclamou subsídios a hospitais privados?

Ou André Ventura, deputado, inspetor da Autoridade Tributária em regime de licença sem vencimento e até 2019 consultor da Finpartner, uma empresa do ramo de planeamento fiscal da sociedade de advogados Caiado Guerreiro, especialistas na aquisição de vistos gold, imobiliário de luxo e formas criativas de lidar com o fisco. Enquanto inspetor tributário estagiário, Ventura assinou um parecer que serviu para isentar do pagamento de 1.8 milhões de euros de IVA uma empresa que trazia cidadãos líbios para receberem tratamento médico em Portugal, ao abrigo dos vistos de refugiados. A empresa pertencia a Paulo Lalanda de Castro e o Ministério Público incluiu-a na investigação aos vistos gold, por suspeita de favorecimento1.

Sabemos o que fez enquanto inspetor, mas o que terá feito enquanto deputado? Para começar, mentiu sobre a contradição que existia entre a obrigatoriedade da exclusividade dos deputados defendida pelo Chega, e o salário acumulado que o seu deputado único recebia da Assembleia da República e da Finparter S.A.

Voltemos ao princípio: é possível que as votações sobre leis que regulam diretamente os interesses, e os lucros, das atividades privadas destes deputados tenham sido influenciadas exclusivamente pela defesa do interesse público? Até é. Mas a dúvida é legítima e nestas coisas não há coincidências - o formigueiro instala-se.

O novo Presidente do CDS parece ter visto este problema. É uma cambalhota surpreendente face à realidade da bancada e às votações do CDS até agora, será para levar a sério? O CDS sempre fez coro com as vozes que insistem em difamar a capacidade moralizadora e legitimadora da exclusividade do interesse público para o sistema democrático. Aplicariam o mesmo princípio a juízes, procuradores ou ministros?

Não, reservam a suposta compatibilidade entre interesse público e privado para o poder legislativo. Aqueles que creem que se pode acumular uma função privada com a função de deputado obviamente acham que os deputados não fazem muito. A suposta mais-valia de acumular funções para não ser um parlamento de funcionários é uma posição antiparlamentarista, que debilita qualquer capacidade legislativa ou de fiscalização do parlamento. E a ligação aos cidadãos? E o tempo para isso? Depois os mesmos alegam o distanciamento dos eleitos.

Dizem querer proteger a democracia, mas de quê? Do interesse público? Dos próprios eleitores? Claramente há piores mãos em que poderia cair.

Artigo publicado no jornal “I” a 29 de abril de 2021

Notas:

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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