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Um dia diferente…

Há 47 anos acordei cedo para ir para o Instituto de Agronomia, na Ajuda, Lisboa, onde estudava no 2º ano. Seria um dia como os outros, se não tivesse sido avisado na estação de comboios que estava em curso uma revolução.

A indicação era clara: ficar em casa! Mas esse conselho esbarrou na minha extrema curiosidade e na raiva que tinha ao regime. Politizado desde que entrei na Universidade, batizado logo no início com uma carga policial numa mera reunião de associação de estudantes, obviamente que me dirigi para o Rossio no comboio da linha de Sintra. O comboio levava dois únicos passageiros: eu e um colega meu. Não me lembro porquê, mas descemos a Rua do Alecrim até ao Cais Sodré. Aqui, passeámo-nos descontraidamente entre os soldados de armas aperradas deitados no asfalto. Ingenuamente perguntei-lhes de que lado estavam. Uns responderam-me que estavam a defender o Governo, outros que queriam era dormir…

Tentei ir para o Terreiro do Paço pela Rua de Artilharia 1, mas a passagem estava impedida com carros de combate. Mal sabia eu que, naquela altura e nessa mesma rua, Salgueiro Maia se defrontava com os defensores do regime. No Terreiro do Paço deserto passei-me junto aos tanques. Muitos daqueles oficiais nos dias seguintes viriam a estar escarrapachados nas notícias dos jornais e televisão. Ah, se eu tivesse levado uma máquina fotográfica…também as minhas fotos teriam ficado conhecidas…

No caminho para o Rossio começaram-se a juntar centenas de pessoas a gritar pela liberdade numa esfuziante alegria (nunca vi nada de mais espontâneo…), entrecortada algum tempo depois por um som estranho. Gritaria: vem aí a GNR a cavalo! Debandada geral, quedas, gritos, correrias, nervosismo intenso. Afinal era um elétrico a descer a rua da Conceição. Mas isto mostra a mescla de medo e alegria nessas horas cruciais. Mais colegas ativistas das Associações aparecem e com a indicação de que os líderes e ministros estavam todos refugiados no Quartel do Carmo (era bom, mas não era assim…).

Mais alegria e nervos à flor da pele. Muitos dos meus colegas e amigos tinham a cara tapada ou escondiam-se. Na verdade, as informações eram escassas e desencontradas e havia a perceção para muitos que poderia ser um golpe da extrema direita por parte das forças do Kaúlza de Arriaga. Só ao fim da tarde a situação se foi tornando mais clara. Nesta altura a GNR não estava desarmada e posicionava-se ameaçadoramente ao longo da Rua de Oliveira ao Carmo, que dá precisamente para o Largo do Carmo. Isto é, durante todo o dia os revoltosos estavam vigiados pelas forças do regime. Mas, coisa curiosa, os militares da GNR foram completamente ignorados pela multidão. E lá entra e sai um Chaimite do Quartel. Só no dia seguinte soubemos que estava lá dentro nada mais do que o chefe do Governo – que passou desapercebido entre a multidão…

Mas um estudante antifascista não é de ferro. Doíam-nos as pernas, a fome era muita e ao fim do dia abandonámos a Revolução. Um dia lindo.

No dia anterior, ou seja, no 24 de abril, à noitinha tinha ido visitar o V Salão de Antiguidades na FIL, dado que o meu pai como antiquário, tinha aí um stand. Vi depois alguma agitação – era o Presidente da República, Américo Tomás, que dava uma volta pela Feira com toda a descontração rodeado dos seus acólitos. Umas horas depois estava fechado em casa a tremer de medo. Mas isto evidencia como o regime foi completamente apanhado de surpresa. Os Capitães deram a volta à PIDE. Depois do Golpe prematuro das Caldas, que levou à prisão dumas dezenas de oficiais spinolistas pensavam que a contestação no seio das Forças Armadas tinha desaparecido. E foram apanhados com as calças na mão…

Artigo publicado em Interior do Avesso

Sobre o/a autor(a)

Professor Catedrático da UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro) e membro do Conselho Geral da Universidade. Doutorado em Ciências Florestais.
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