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Portugal: imaturidade e amor próprio

A dificuldade em olhar com verdade para o passado colonial não vem de hoje nem se revelou apenas neste caso. Há uma espécie de “pacto de silêncio sobre a guerra”, que nos tem impedido de encarar os massacres e os crimes cometidos.

“Sinto-me constrangido ao ver como Portugal, apesar de ser um país tão antigo, continua tão imaturo na leitura da sua própria história, com um amor próprio tão frágil que não suporta qualquer olhar crítico para o próprio passado”.

As palavras são de Luca Argel, músico carioca e portuense, brasileiro com nacionalidade portuguesa, que acaba de lançar o seu “Samba de Guerrilha”, um álbum que é também uma aula de história, através da qual somos levados por mais de um século de resistência. O lamento de Luca vem a propósito da proposta grotesca, impossível e ridiculamente inconstitucional de “deportar” um cidadão português, Mamadou Ba, por dizer o que tantos outros disseram: que a história de Marcelino da Mata é a de uma galeria de crimes de guerra, aliás exibidos pelo próprio em várias declarações públicas. Curiosamente, não faltaram portugueses – militares, deputados, advogados, historiadores… – a lembrar isto. Contudo, ninguém se atreveu a sugerir que fossem expulsos do país. É que Mamadou não é apenas português. É negro.

A dificuldade em olhar com verdade para o passado colonial não vem de hoje nem se revelou apenas neste caso. O historiador Miguel Cardina dissecou-as há dias. Há uma espécie de “pacto de silêncio sobre a guerra”, que nos tem impedido de encarar os massacres e os crimes cometidos (mesmo os que, no passado, já foram explicitamente condenados pelas Nações Unidas). Esse pacto manifesta-se nas “burocráticas omissões” como a que ficou patente no recente voto de pesar do Parlamento, validado pela direita e pelo PS. E expõe-se na fuga ao debate com a suposta equivalência, historicamente absurda, entre “os erros dos dois lados” (como se a ocupação colonial não fosse uma estrutura de poder desigual, de dominação e de opressão), que procura passar um pano nos factos para diluir quaisquer responsabilidades, fingindo que, na guerra, todos se comportaram da mesma forma. Este “pacto de silêncio” tem-nos privado de uma abordagem madura do legado colonial e dos padrões que herdámos dele e que hoje se exprimem diversamente, mas tem contribuído também para invisibilizar as feridas e os traumas dos que, tendo sido enviados para combater, tiveram de lidar frequentemente sozinhos com os fantasmas e as dores profundas que essa experiência cravou no seu corpo.

Perante a ausência de um espaço de debate, de uma leitura crítica da violência colonial, perante a ocultação das narrativas da resistência anticolonial, o que fica, além do silêncio e da amnésia? A reabilitação, mais explícita ou mais implícita, de um imaginário colonial baseado numa recauchutagem das teses lusotropicalistas e na ideia de um “convívio” e de uma “grandeza” portuguesas. Quem ousa questionar essa narrativa e esse revisionismo histórico, logo é apelidado de querer “politizar a história”, de estar a “interpretar o passado à luz de hoje”, de desejar substituir a análise pela imputação da “culpa”, como se os processos de desmemória que abrem a porta à banalização do colonialismo e do racismo não fossem a mais política das escolhas.

À recriminação das tentativas de promover uma leitura crítica do passado no espaço público, tem-se somado ainda a fabricação histriónica de falsas polémicas. A mais recente envolve uns supostos canteiros de flores na Praça do Império, em Lisboa, que teriam sido destruídos selvaticamente pela fúria antirracista e de reescrita da história da Câmara Municipal, mas que afinal não existem há décadas, nem sequer eram parte do projeto original da praça. Mas que importa tudo isso, se o objetivo é agitar e polarizar controvérsias, mesmo que não sejam reais?

Este silêncio e esta polarização tem vários efeitos de invisibilização. Invisibiliza a herança colonial do passado, mas também a identificação da discriminação e das fraturas económicas e sociais de hoje, como se o trabalho de universalização e de construção de alianças e de lutas maioritárias no país não incluísse o reconhecimento das múltiplas experiências de desigualdade e de negritude que fazem parte de Portugal. E concorre, finalmente, para a banalização e a legitimação da extrema-direita atual. Essa banalização está aí, na competição de uma ala do CDS que quer ser ventríloqua do Chega. Está aí, no namoro explícito entre dirigentes do PSD e Ventura (que esta semana teceu elogios a Passos Coelho e ao sentido dos sacrifícios que impôs no tempo da troika). E está aí, também, no discurso de uma direita intelectual que tem vindo a relativizar de forma explícita o regime constitucional e a própria democracia. Inebriada com os resultados da extrema-direita, Fátima Bonifácio é provavelmente quem de forma mais desabrida se vem dedicando ao elogio dessa direita extremada que dispensa as “boas maneiras” e as “falinhas mansas” da democracia, constituindo-se assim no “possível pelotão da frente” para o resto da direita que queira ir a reboque. Eis, no seu esplendor, a miséria de espírito, a abdicação democrática e a infantilidade política destas elites.

Felizmente, há um outro país que não quer o fantasma do passado como projeto. Que tem amor próprio suficiente para olhar criticamente para trás. Que quer verdade e memória. Que está disposto a lutar por democratizar a democracia, em vez de abdicar dela.

Artigo publicado em expresso.pt a 27 de fevereiro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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