You are here

(Des)ilusões: teletrabalho, qualidade de vida e igualdade de género

Não negamos que o teletrabalho pode constituir-se como uma oportunidade em certas fases dos ciclos de vida. Importa, contudo, ter presente que se trata de uma oportunidade que exclui muitos/as profissionais, não sendo indiferente às desigualdades sociais, incluindo as assimetrias marcadas pelo género. Artigo de Sara Falcão Casaca.
Mulher em teletrabalho. Foto de Ecole polytechnique/Flickr
Mulher em teletrabalho. Foto de Ecole polytechnique/Flickr

Com a atual crise sanitária, várias/os profissionais ficaram temporariamente em regime de teletrabalho. É sabido que nem todas as profissões são compatíveis com o mesmo, a que acrescem as assimetrias nas condições e nos meios para que o trabalho possa ser realizado a partir de casa. Em Portugal, a expressão tem sido residual, sobretudo quando se trata especificamente da forma contratual de teletrabalho. Na UE, segundo dados da Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de vida e de Trabalho (EUROFOUND), é na Dinamarca que a modalidade se encontra mais disseminada. As razões subjacentes não surpreendem. Entre nós, é ainda evidente o peso de um padrão de especialização produtiva assente em trabalho intensivo, coexistindo com princípios tradicionais de gestão e de organização do trabalho; por conseguinte, encontra-se relativamente difundida a preocupação da gestão com a prestação de trabalho presencial que seja compatível com a supervisão e o controlo direto. O teletrabalho requer, em alternativa, modelos de organização do trabalho assentes na qualificação e na descentralização da autonomia. Exige ainda elevada acessibilidade às tecnologias e literacia digital.

Mas será que o teletrabalho é realmente facilitador da conciliação trabalho-família e da qualidade de vida? E pode estimular uma maior igualdade entre mulheres e homens na distribuição do trabalho pago (profissional) e não pago (doméstico e relativo ao cuidar)?

Um estudo exploratório que realizámos há uns anos permitiu constatar que o controlo sobre o tempo das pessoas em teletrabalho pode ser bastante exíguo

Um estudo exploratório que realizámos há uns anos permitiu constatar que o controlo sobre o tempo das pessoas em teletrabalho pode ser bastante exíguo. Esta questão colocava-se fundamentalmente no caso das mulheres, cuja autonomia era particularmente reduzida pelos vários constrangimentos familiares e domésticos com que em geral se deparavam. Mulheres e homens evocaram razões distintas relativamente à “opção” pelo teletrabalho: enquanto elas salientaram a necessidade de flexibilidade na gestão do tempo de forma a atender às responsabilidades familiares e profissionais - e a maioria destacou a maternidade e a existência de crianças pequenas como a principal razão -, eles evocaram sobretudo a possibilidade de aumentar a concentração, a eficiência e a produtividade. Muitas teletrabalhadoras-mães, dada a sobrecarga de tarefas domésticas e familiares - e as interferências a este nível -, reportaram ter de trabalhar (profissionalmente) à noite, aproveitando o sono das crianças e sacrificando o seu próprio tempo de descanso. De destacar, ainda, que nem todas dispunham de uma divisão da casa exclusivamente dedicada ao exercício da atividade profissional, sincronizando o tempo e o espaço com o das crianças ou outros/as familiares. Esta contingência, associada à simultaneidade de tarefas, ora domésticas ora profissionais, era percecionada como particularmente desgastante. Um dos riscos associados ao teletrabalho, na perceção das pessoas inquiridas, prendia-se ainda com o isolamento social.

a intensidade de trabalho associada ao teletrabalho (em sentido estrito) ou ao trabalho remoto com apoio de tecnologias móveis (em sentido lato) é superior àquela verificada nos locais de trabalho convencionais, assim como é agravado o potencial de conflito com a vida familiar/pessoal

Se me atrevo a recuperar estas conclusões (a investigação foi concluída em 2004) é porque muitos estudos atuais apontam no mesmo sentido, ajudando a desmistificar as ilusões relativamente ao teletrabalho (ou ao trabalho à distância em sentido lato). Há poucos dias, a CoLABOR divulgava alguns resultados do estudo sobre a situação presente (Trabalho e Desigualdades no Grande Confinamento), evidenciando que são as mulheres (em teletrabalho) com crianças quem mais relata dificuldade na gestão dos tempos. A este propósito, sugiro também a leitura do estudo conjunto da EUROFOUND e da OIT - Working anytime, anywhere: The effects on the world of work -, de 2017, onde se evidencia que a intensidade de trabalho associada ao teletrabalho (em sentido estrito) ou ao trabalho remoto com apoio de tecnologias móveis (em sentido lato) é superior àquela verificada nos locais de trabalho convencionais, assim como é agravado o potencial de conflito com a vida familiar/pessoal.

Não negamos que o teletrabalho pode constituir-se como uma oportunidade em certas fases dos ciclos de vida. Admite-se que possa ser útil em determinadas circunstâncias, sejam as de natureza excecional (o contexto atual assim o expõe…) sejam as necessidades e imprevistos que ocorrem no plano familiar/pessoal. Importa, contudo, ter presente que se trata de uma oportunidade que exclui muitos/as profissionais, não sendo indiferente às desigualdades sociais, incluindo as assimetrias marcadas pelo género. Aliás, pode mesmo reforçá-las. E expõe, uma vez mais, a necessidade de partilha do trabalho não pago (doméstico e relativo ao cuidado) entre mulheres e homens. A minimização dos riscos (e aqui só referimos alguns…) parece recomendar a alternância entre trabalho à distância e presença física nas instalações da entidade empregadora. É aqui que estão (ou melhor, deveriam estar…) as condições de trabalho em igualdade, as oportunidades de socialização e de construção/consolidação da solidariedade coletiva, assim como os momentos formais e espontâneos de partilha de experiência e conhecimento que favorecem o desenvolvimento profissional. Não surpreende, pois, que hoje muitas mulheres e muitos homens estejam a vivenciar as ambivalências do teletrabalho. A expressão de desilusão será - igualmente sem surpresa - moldada pelas desigualdades sociais, incluindo as que têm a marca do género.

Artigo de Sara Falcão Casaca, professora universitária, em ISEG-Universidade de Lisboa. Publicado originalmente em jornal Público, a 30 de abril de 2020.

(...)

Neste dossier:

Dossier Teletrabalho

Teletrabalho e os riscos da teledisponibilidade

O teletrabalho permitiu que muitas pessoas continuassem a trabalhar em tempo de pandemia e com mais proteção. Porém, tem elevados riscos para quem trabalha, em particular o da violação do direito ao repouso. Dossier organizado por Carlos Santos.

teletrabalho - foto de Paul Skinner / flickr

Teletrabalho: uma realidade (ainda) desconhecida?

O advento tecnológico das sociedades pós-industriais trouxe inegáveis consequências em todas as dimensões da nossa vida, incluindo, para o que aqui releva, o trabalho e a crescente diluição entre as suas fronteiras e o tempo de descanso. Por Rita Garcia Pereira.

Teletrabalho. Foto de Peter Kaminski/Flickr

A desconexão dos trabalhadores: direito ou dever?

A questão dos tempos de trabalho e da sua limitação, marca de origem do Direito do trabalho, adquire novas roupagens nesta economia digital. Quem pode dizer, atualmente, qual é o tempo de trabalho de um trabalhador digital? E qual o seu período de repouso? Artigo de João Leal Amado** e Teresa Coelho Moreira*.

Mulher em teletrabalho. Foto de Ecole polytechnique/Flickr

(Des)ilusões: teletrabalho, qualidade de vida e igualdade de género

Não negamos que o teletrabalho pode constituir-se como uma oportunidade em certas fases dos ciclos de vida. Importa, contudo, ter presente que se trata de uma oportunidade que exclui muitos/as profissionais, não sendo indiferente às desigualdades sociais, incluindo as assimetrias marcadas pelo género. Artigo de Sara Falcão Casaca.

Foto tirada em março na sala de trabalho de um dos call-centers do Porto

Teletrabalho nos Call Centers

Estar em teletrabalho não pode ser motivo impeditivo de prestar assistência aos filhos, mas neste momento é essa a realidade, neste momento os filhos de quem está em teletrabalho são verdadeiros órfãos de pais presentes. Artigo do Sindicato dos Trabalhadores de Call Center (STCC-Tás Logado?).

Automatização. Foto do A L´Encontre

Será o teletrabalho o futuro do trabalho?

Será muito difícil voltarmos à situação de pré-pandemia, mas teremos de aprender bastante mais como estas formas de trabalho poderão contribuir para a melhoria da qualidade de vida no trabalho. Artigo de António Brandão Moniz.

Teletrabalho e almoço? - Foto de bubem/flickr

Nas empresas ou em casa: os efeitos da pandemia e as medidas urgentes

O teletrabalho como resposta sanitária passou a ser um mal menor, passando por entre os pingos da chuva. Mas será o paradigma que queremos do ponto de vista laboral? E será que, depois de passar a pandemia, o mundo laboral voltará a ser o que era? Artigo de Nelson Silva

“Trabalhando a partir de casa” por Daquella manera/flickr

Teletrabalho e Saúde Mental

Optar por teletrabalho é bem diferente de trabalhar a partir de casa por "imposição" de uma pandemia que surgiu sem aviso e que, por isso, não deixou alternativas nem deu tempo para que o processo se tivesse organizado como todos desejaríamos. Artigo de Ana Matos Pires.

Teletrabalho não anula o direito a desligar

Transição digital, teletrabalho e “direito de desligar”

O teletrabalho, de momento em Portugal legalmente obrigatório, pode ser um instrumento organizativo e de gestão. Contudo, pode também ser um factor de riscos profissionais e isso não pode deixar de ser também ponderado e reflectido. E agido.