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A cor do sangue LGBTI

Apesar de a legislação portuguesa em vigor não incluir qualquer critério de exclusão com base na orientação sexual e de a DGS ter removido qualquer referência à categoria “homens que fazem sexo com homens”, a realidade da prática clínica afasta-se da Lei e do saber científico.

Janeiro de 2021 foi o mês horribilis em Portugal. Durante o primeiro mês do ano bateram-se recordes macabros, não só de número de mortes Covid: 5.576 óbitos, quase metade do total de mortes Covid até esta data; mas também quanto ao número total de mortes no país, de acordo com os dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito.

Foi neste cenário de enorme pressão sobre todo o Sistema Nacional de Saúde (SNS) que, a 20 de janeiro, o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) alertou para o facto de as reservas existentes de alguns grupos sanguíneos, nomeadamente do mais frequente, chegarem para apenas alguns dias.

A nota de imprensa relembra que as deslocações para efeitos de dádiva são permitidas pelas autoridades e deixa o apelo: “Neste momento particularmente difícil da pandemia, apelamos à solidariedade de todos e em nome dos doentes agradecemos por nos ajudarem a Salvar Vidas.”

Em Portugal “podem doar sangue todas as pessoas com bom estado de saúde, com hábitos de vida saudáveis, peso igual ou superior a 50 kg e idade compreendida entre os 18 e os 65 anos. A dádiva de sangue é benévola e não remunerada”. Lê-se na página oficial do SNS.

Foi neste difícil contexto sanitário que vieram a público persistentes notícias sobre dádivas recusadas a dadores por serem homossexuais. A discriminação de dadores de sangue com base na sua orientação é uma prática de longa data, tendo havido desde 1999 protestos por parte de associações e coletivos LGBTI, como o Grupo de Trabalho Homossexual (GTH-PSR), a ILGA Portugal ou a OpusGay.

Apesar de a legislação portuguesa em vigor não incluir qualquer critério de exclusão com base na orientação sexual e de a DGS ter removido qualquer referência à categoria “homens que fazem sexo com homens”, na norma DGS 009/2016, atualizada pela última vez a 16 de fevereiro de 2017, a realidade da prática clínica afasta-se da Lei e do saber científico que lhe devia servir de base.

“Porque não são toleráveis situações de injustificado tratamento desigual entre cidadãos, o alegado ato de recusa das entidades responsáveis pela recolha de sangue, para além de ilegal é vexatório.” Argumentou o Bloco de Esquerda no requerimento em que solicitou a audição, com caráter de urgência, do IPST e da DGS, nas Comissões Parlamentares de Saúde e de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, na Assembleia da República.

A recusa destas dádivas de sangue é ilegal, injustificada cientificamente, humilhante e criminosa em tempos de pandemia. A arrogância do preconceito não pode continuar a ser toleradas pelas entidades responsáveis. A igualdade na Lei deve corresponder a uma igualdade social, real e quotidiana, nomeadamente na dádiva de sangue.

Qualquer discriminação na doação de sangue baseada na orientação sexual deve ser amplamente denunciada, exigindo responsabilidades aos responsáveis. Perdem-se dádivas e dadores devido a práticas clínicas discriminatórias, apesar do contexto legislativo ser o adequado.

Torna-se imperioso, face à calamidade sanitária que atravessamos, a responsabilização política das lideranças, o reforço da formação e informação dos profissionais de saúde e a realização de campanhas que esclareçam devidamente o país.

O sangue, venha ele de quem vier, tem todo a mesma cor: vermelho de dádiva benévola e de vida!

Artigo publicado em plataformamedia.com a 3 de fevereiro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Professora. Ativista social
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