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Até quando?

Em Portugal é como se caísse um avião cheio de pessoas todos os dias. É uma brutalidade que não podemos normalizar.

No tempo de leitura deste artigo houve mais uma pessoa que morreu da covid-19 no nosso país. Dizem os especialistas que os números continuarão a subir nas próximas semanas e, em breve, as duas centenas de mortes diárias serão suplantadas. É como se caísse um avião cheio de pessoas todos os dias. A tragédia ainda é maior se somarmos as mortes que, indiretamente, a covid-19 também potencia. É uma brutalidade que não podemos normalizar.

Os relatos destas mortes são de uma enorme crueldade. Muitas das pessoas morrem sem nenhum familiar por perto, sem se poderem despedir de quem gostavam, sem um toque humano. No meio de batas e máscaras, a pandemia proíbe a humanidade de um rosto conhecido, o último abraço, o agarrar da mão na despedida. Mais de duzentas pessoas a cada dia e as suas famílias sofrendo duplamente com a perda de quem se gosta e a ausência nesse momento final. São muitas as feridas que a pandemia nos deixa e que demorarão a sarar.

O tsunami nos hospitais, que vimos noutros países em momentos passados, parece agora levantar-se à nossa porta. Os relatos dos profissionais não deixam dúvidas do momento difícil que temos pela frente. Tanto lhes pedimos ao longo destes meses, tanto lhes continuamos a pedir agora e os profissionais de saúde, exaustos, continuam a dar o seu melhor. De volta só nos pedem responsabilidade, parco pedido para a enorme dedicação que lhes temos de agradecer.

A explosão de casos levou a que rapidamente o Governo revisse as regras do estado de emergência. A nova estirpe obriga a rever as contas e baralha todas as previsões. Das escolas que não fechavam e dos ATL que se permitiram reabrir, a ordem agora é de encerramento total por quinze dias, provavelmente prolongáveis se a pandemia exigir.

Percebo as dúvidas que o Governo teve sobre o encerramento das escolas. Essa decisão tem enormes custos no futuro e não é tomada de ânimo leve. Há crianças que só têm acesso a alimentação em espaço escolar e a rede de apoio social que funcionará não garante chegar à totalidade das necessidades. De um ponto de vista pedagógico, o ensino à distância mostrou ser potenciador de enormes desigualdades que, se nada for feito, marcará o destino de muitas crianças: as que vivem em famílias desestruturadas ou que não têm quem as acompanhe.

Se percebo as dúvidas no encerramento das escolas, acho absolutamente incompreensível o tratamento que está a ser dado ao setor privado da saúde. Até quando irá o Governo adiar esta urgência nacional?

No entanto, nem todos podem ficar em casa com as suas crianças. Por um lado, porque o Governo assumiu o erro de não pagar na totalidade a perda de rendimento a quem ficar em casa, algo que tem de corrigir rapidamente. Por outro lado, porque essa decisão não é possível para muitos trabalhadores que não têm liberdade de escolha perante a insegurança no emprego ou precariedade laboral. Por último, esperava-se que o Governo também tivesse apresentado uma ideia para resolver o problema dos pagamentos a creches ou ATL no período em que estarão encerrados e não deixar que se instale a confusão como aconteceu no confinamento passado. Virá? Já devia ter sido pensada.

Se percebo as dúvidas no encerramento das escolas, acho absolutamente incompreensível o tratamento que está a ser dado ao setor privado da saúde. O país assiste a um cenário de catástrofe que se instala no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e exige-se ao Governo que não se renda ao caos. Para isso é necessária a mobilização de toda a capacidade que o país tem para responder a este momento difícil que atravessamos. No entanto, o Governo tarda em fazer o que é absolutamente óbvio: requisitar o setor privado da saúde para reforçar a capacidade do SNS.

Todos ouvimos que o SNS está no limite, que as enfermarias e as unidades de cuidados intensivos (UCI) já pouco mais aguentam. No momento em que escrevo este texto, há 5630 doentes covid internados e 702 em UCI. Perante esta avalanche, o setor privado tem respondido que está disponível a ajudar o SNS, mas pouco se vê. Das 11.300 camas que os privados têm ao dispor, apenas 800 estão contratualizadas com o SNS e, dessas, apenas 80 para doentes covid. É inegável que os 20.000 profissionais desse setor seriam essenciais para fazer funcionar os hospitais de campanha que ainda estão fechados. Até quando irá o Governo adiar esta urgência nacional? Haverá interesse maior do que assegurar que ninguém fica sem os cuidados de saúde que precisa?

Artigo publicado no jornal “Público” a 22 de janeiro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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