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Um novo ano à altura do mal

Se olharmos para este dia 1 como uma espécie de início de um ano zero que nos permita apenas respirar, acabaremos rapidamente sufocados em arrependimento no próximo e inevitável sufoco. Estejamos, antes, à altura do mal que passámos.

Basta de lamúrias. Hoje é o primeiro ano do resto das nossas vidas com a vacina covid-19 nas mãos.

Um extraordinário incremento à espécie, se pensarmos que há um ano nem sequer noção tínhamos de que existia um vírus que modificaria a nossa vida num espaço de meses e a viraria do avesso - e para sempre - em poucos dias. Nada será como dantes e o caminho é ainda longo. A vontade de esquecer o ano que passou é humana até à ponta dos cabelos. Mas estamos carecas de saber que o que se quer esquecer à força, pode perdurar com enorme margem de incerteza e dor.

É precisamente pelo ano que passou ter sido tão violento e amargo, que sobe a fasquia para o ano de 2021. Não, este ano não tem que se limitar a ser um ano "melhorzinho". Isso seria confrangedor. 2021 tem a obrigação de dar resposta às dificuldades, disfuncionalidades e abismos identificados, abertos e agravados pelos reflexos da pandemia. Se há algo que a pandemia permitiu tornar visível e nos permitiu olhar de frente, foi a angustiante fragilidade de alguns sectores da nossa sociedade, caídos aos caídos porque já viviam da filigrana dos restos, da inadaptação, da exclusão social, de uma visão arcaica - ora paternalista, ora troglodita - na forma como eram olhados e vividos.

O sector cultural, alma de um povo, é um dos melhores exemplos. Foi o primeiro a parar e nunca pôde recomeçar com normalidade alguma. Se é terrível quando subtraem a alma a um povo, é ainda mais aterrador quando se sabe que a alimentação dessa alma anda suspensa há décadas, sem protecção social, sem relação visível com o Estado, com pessoas com a cabeça abaixo da linha de água, fora do radar de visibilidade, sem consideração pela inevitável intermitência do seu trabalho. Um campo totalmente minado pela desprotecção ao sabor da incúria dos diversos poderes políticos que, durante a pandemia, atirou milhares de pessoas e famílias para os limites da sobrevivência e da caridade. A enorme esperança que se deposita na aprovação do "Estatuto dos Trabalhadores da Cultura" em 2021 (ainda em fase de construção e debate) é decisiva para a mudança deste paradigma abjecto. Esteja à altura, agora e finalmente, o poder político em amplo consenso. Assim como para a necessidade de uma justa e eficaz transposição da "Directiva relativa ao Direito de Autor e Direitos Conexos para o Mercado Único Digital" que respeite e defenda os artistas, criadores e seus representantes. Matéria crucial, decisiva para as próximas décadas, sendo que dela dependerá a sobrevivência e independência da criação cultural.

Se olharmos para este dia 1 como uma espécie de início de um ano zero que nos permita apenas respirar, acabaremos rapidamente sufocados em arrependimento no próximo e inevitável sufoco. Estejamos, antes, à altura do mal que passámos.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 1 de janeiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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