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América Latina: Bolívia, Chile e Peru iluminaram um 2020 sombrio

Vitória do MAS boliviano, que regressou ao poder depois de ter sido afastado por um golpe de Estado, vitória do “sim” à nova Constituição no Chile e rebelião no Peru estremeceram um continente entristecido pela pandemia. Artigo de Luis Leiria.
Face a um presidente Piñera desmoralizado, "sim" a uma nova Constituição e Constituinte venceu com quase 80%. Foto de Jose Pereira.
Face a um presidente Piñera desmoralizado, "sim" a uma nova Constituição e Constituinte venceu com quase 80%. Foto de Jose Pereira.

Na América Latina, o ano de 2020 foi marcado, tal como em todo o planeta, pela pandemia da Covid-19. O primeiro caso detetado no continente sul-americano ocorreu no dia 26 de fevereiro em São Paulo, Brasil, num momento em que a Itália, por exemplo, já registava 470 casos confirmados e 12 mortes.

Infelizmente, este pequeno atraso da chegada do novo coronavírus não foi aproveitado pelas autoridades sanitárias e governos dos principais países da região. Os efeitos devastadores que a pandemia provocou no subcontinente puseram em evidência as pesadas insuficiências dos seus serviços públicos de saúde, ao mesmo tempo que alguns países sofreram as consequências do negacionismo e da irresponsabilidade dos seus governos, com destaque para o presidente Jair Bolsonaro, do Brasil.

A desigualdade, outra praga que assola o continente, também contribuiu para a mortandade. Nos muitos países que não dispõem de serviços de saúde públicos e universais, o acesso à saúde é exclusivo dos que têm dinheiro para pagá-la. Mas mesmo em países, como o Brasil, que tem um SUS (Serviço Único de Saúde), este rapidamente ficou assoberbado. As valas comuns cavadas em Manaus, ou em São Paulo, no Brasil, ficaram na nossa memória como símbolo da crise humanitária que acompanhou a crise sanitária. Os cadáveres de pessoas que morriam, vagueando pelas ruas de Guayaquil, no Equador, sem obter ajuda, formaram a imagem mais dramática desta crise.



Valas comuns cavadas no cemitério da Vila Formosa, a 20 de abril de 2020, para os mortos de Covid-19. Foto de Paulo Whitaker/EPA

No momento em que este artigo está a ser escrito, o continente sul-americano atingiu os 12 milhões de casos confirmados de Covid-19, que provocaram 340 mil mortes, sendo o Brasil o país que apresenta o maior número de casos e de óbitos, e o Peru o maior índice de mortes por milhão de habitantes (1.105).

Brasil: das ameaças de golpe ao acordo de Bolsonaro com o “centrão”

O alastramento da pandemia por toda a América Latina interrompeu crises políticas ou deixou-as em estado latente, adiou processos eleitorais e atenuou conflitos abertos. No Brasil, o novo coronavírus transformou-se num foco de disputa política, com o presidente Jair Bolsonaro a desvalorizar o perigo da doença para a saúde pública, considerando que a Covid-19 não passava de uma “gripezinha, ou um resfriadinho”. As medidas de confinamento (sempre muitos parciais) foram decretadas pelos governadores dos Estados contra a vontade do presidente, que afirmava serem os efeitos dessa terapia piores que os da doença, apostando que a cloroquina, um medicamento usado contra a malária, seria o remédio milagroso que curaria a pandemia. A esquerda, defensora do confinamento, ficou sem a sua principal ferramenta para intervir nas crises: a mobilização de rua.

A extrema-direita negacionista ficou assim, durante meses, senhora das ruas, mobilizando as hostes neofascistas em sucessivas manifestações de apoio a Bolsonaro e contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, em defesa aberta de um golpe militar.

E os escândalos sucederam-se, envolvendo os filhos do presidente. A “rachadinha” de Flávio Bolsonaro, um esquema criminoso de arrecadar dinheiro através da recolha de parte dos salários dos assessores parlamentares, reais ou fictícios; o escândalo do envolvimento de toda a família Bolsonaro, e em especial do filho Carlos, com as milícias do Rio de Janeiro, chegando a suspeitas de ligação com o assassinato da vereadora Marielle Franco; a prisão de Fabrício Queirós, amigo da família e pivot de ambos os escândalos; a renúncia do ministro da Justiça, Sérgio Moro, o ex-juiz justiceiro da operação Lava-Jato, que saiu acusando o presidente de manipular a atuação da Polícia Federal em investigações que diziam respeito ao próprio Bolsonaro e família.

Sem a pressão das ruas, qualquer um destes escândalos, que seriam mais que suficientes para que se desse o início a um processo de impeachment a Bolsonaro, acabaram por ser provisoriamente postos de lado pela negociação de uma trégua entre o presidente e o Judiciário. Bolsonaro, para defender o seu cargo e afastar o fantasma do impedimento, desistiu de mobilizar a sua base neofascista em prol de um golpe militar e negociou um acordo para ter sustentação parlamentar com os partidos do ”centrão”, os mais venais do Congresso Nacional brasileiro.

Adiamentos na Bolívia e Chile

A pandemia também foi o pretexto para o adiamento de dois processos eleitorais que estavam rodeados de enormes expectativas: as eleições presidenciais na Bolívia, anuladas pelo golpe palaciano contra o presidente Evo Morales, e o referendo constitucional do Chile, arrancado por poderosas mobilizações de rua ocorridas em 2019.

As eleições da Bolívia foram primeiro adiadas sem data, depois marcadas para setembro, e finalmente fixadas em 18 de outubro. Uma grande mobilização e o regresso aos cortes de estradas (mais de cem), promovidos pela Central Operária Boliviana (COB) garantiram que não houvesse novos adiamentos.

No Chile, o plebiscito sobre a necessidade ou não de uma nova Constituição foi adiado pelo presidente Sebastián Piñera de abril para 25 de outubro. O plebiscito fora o resultado de uma negociação entre Piñera e a oposição após semanas de protestos nas ruas iniciados em outubro de 2019, os maiores desde o regresso do país à democracia. A queda de popularidade de Piñera impediu novas manobras por parte do presidente. Em junho, as sondagens indicavam que apenas 6% dos chilenos aprovavam Piñera, ao mesmo tempo que 81% consideravam que a sua gestão da crise era má ou muito má.

A pior crise económica dos últimos 120 anos

As consequências económicas e sociais da pandemia não tardaram a fazer-se sentir em toda a América Latina. Segundo um documento da Comissão Económica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) divulgado este mês, “antes da pandemia, a região já apresentava um baixo crescimento económico: em média 0,3% no período de 2014-2019, e especificamente em 2019 uma taxa de 0,1%.” A pandemia, prossegue o documento, trouxe consigo “os choques externos negativos e a necessidade de implementar políticas de confinamento, distanciamento físico e fechamento das atividades produtivas, que fizeram com que a emergência sanitária se materializasse na pior crise económica, social e produtiva vivida pela região. A contração da atividade económica foi acompanhada por um aumento significativo da taxa de desemprego, que é prevista em torno de 10,7% em 2020, uma profunda queda da participação no mercado de trabalho e um aumento considerável da pobreza e da desigualdade.”

Segundo a CEPAL, a América Latina e Caribe são as regiões mais atingidas do mundo em desenvolvimento pela crise provocada pela Covid-19, vivendo atualmente “a pior crise económica dos últimos 120 anos.” Para o ano de 2021, a CEPAL prevê uma taxa de crescimento do PIB positiva (3,7%), mas a recuperação do nível pré-crise “será lenta e só será alcançada por volta do ano de 2024.”

O turbilhão Bolívia-Chile-Peru

Mas o ambiente sombrio que parecia ter assentado praça em todo o continente, trazido pela epidemia, foi subitamente abalado por uma sucessão de acontecimentos, que vinham a amadurecer desde antes, mas que se sucederam, num turbilhão, em menos de um mês.

Na Bolívia, em 18 de outubro, o MAS, que havia sido afastado do poder por um golpe de Estado em novembro de 2019, venceu as eleições. O seu candidato à Presidência, Luis Arce, foi eleito logo à primeira volta com 55,1% dos votos. O ex-presidente Carlos Mesa, que concentrou o “voto útil” dos que queriam impedir o regresso do MAS, ficou a 20 pontos de distância.

O MAS obteve também maioria no Parlamento. No seu bastião de La Paz, impôs-se com 65% a 32%, enquanto conseguiu uns significativos 35% em Santa Cruz, onde se fortaleceu o conservador Luis Fernando Camacho, líder dos protestos de rua de novembro do ano passado que, no quadro de um motim policial e de um pronunciamento militar, levaram ao derrube de Evo Morales e ao seu exílio na Argentina.

A vitória do MAS foi tão esmagadora que a ONU e a OEA apressaram-se a declarar que não havia indícios de fraude.

No Chile, uma semana depois, no dia 25, o “sim” a uma nova Constituição venceu o plebiscito com 78,27% dos votos, tendo o “não” recebido 21,73%. Apesar da pandemia, cerca de metade dos eleitores foram votar e, depois de conhecidos os resultados, dezenas de milhar de pessoas festejaram nas ruas de Santiago do Chile gritando “renascimento”. Muitas acenaram com bandeiras Mapuches, o povo indígena que espera ser reconhecido numa nova Constituição.

Na votação do plebiscito, para além da pergunta sobre a nova Constituição, uma outra dizia respeito à forma como seria elaborado o texto constitucional. À pergunta “que órgão deve redigir a nova Constituição?” também a esmagadora maioria, 79% dos votantes, preferiu que fosse uma “assembleia constituinte”, paritária a 50%, com 21% a preferir a solução de uma “assembleia mista” constituída por cidadãos mas também pelos parlamentares já eleitos.

As eleições para a Constituinte serão em abril de 2021. Vão ser eleitos 155 deputadas e deputados que terão o prazo de um ano para escrever a nova Constituição. Esta terá de ser aprovada por dois terços. A seguir, em 2022, um referendo irá aprová-la ou rejeitá-la.

Nove dias depois do plebiscito no Chile, em 3 de novembro, numa eleição decisiva para todo o mundo e também para a América Latina, o republicano Donald Trump perdeu as eleições presidenciais dos Estados Unidos para o seu adversário, Joe Biden, candidato do partido Democrata. Isto significou que a extrema-direita latino-americana, com Bolsonaro à cabeça, perdeu o seu aliado na Casa Branca.

Seis dias depois, a 9 de novembro, o Peru explodiu em protestos contra a destituição, pelo Parlamento, do presidente Martín Vizcarra e a designação de Manuel Merino, que até então era presidente do Congresso, como presidente interino. Os protestos espontâneos prosseguiram nos dias seguintes, com destaque para a participação jovem, e ampliaram-se quando Merino nomeou para chefiar o governo um político-símbolo da velha guarda e formou um governo de conservadores e empresários. Ao mesmo tempo, deu ordem para reprimir os protestos, que foram escalando até que no sábado dois manifestantes morreram barbaramente, vítimas da repressão: um deles recebeu 10 projéteis na cara e o outro foi atingido no coração.

O acontecimento provocou a demissão em cadeia dos ministros recém-nomeados e finalmente do próprio Merino. O país ficou sem presidente da República e sem presidente do Congresso e as ruas exigiam que fosse eleito um deputado que não tivesse votado a favor da destituição de Vizcarra. Um grupo de deputados ainda tentou ignorar essa condição, mas no final a vontade das ruas impôs-se e o Congresso elegeu Francisco Sagasti, do Partido Morado, que assumiu interinamente a Presidência da República até as eleições gerais de 11 de abril de 2021.

Vale ainda assinalar que nas eleições municipais de 15 e 29 de novembro, no Brasil, o maior derrotado foi o presidente Jair Bolsonaro.

Feminismo em ascenso

Ainda antes do fim do ano, a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou na manhã do dia 12 de dezembro um projeto de lei, apresentado pelo governo do presidente Alberto Fernández, que legaliza o aborto até a 14ª semana de gestação. O projeto recebeu 131 votos a favor e 117 contra, e seis abstenções.

O texto segue agora para debate e votação no Senado.

Em 2018, a Câmara já tinha aprovado um projeto semelhante, durante o governo ultraliberal de Mauricio Macri, mas com uma margem menor: apenas quatro votos de diferença. A iniciativa, aprovada pelos deputados, foi rejeitada pelo Senado.

Durante a sessão na Câmara, que durou 20 horas, grupos defensores e opositores ao projeto manifestaram-se junto ao Congresso, em Buenos Aires.

Milhares de mulheres envergando lenços verdes, o símbolo da campanha pela legalização do aborto no país, fizeram vigília no local. Separadas apenas por uma cerca estavam manifestantes com lenços azuis, que se opõem à legalização, em número muito menor e sem o entusiasmo transbordante das mulheres de lenço verde.

A decisão no Senado será ainda em 2020, no dia 29.

Dois milhões de mulheres saíram às ruas no 8 de março de 2020 no Chile. Foto Rodrigo Sáez/EPA

A mobilização das mulheres argentinas pelo direito ao aborto legal é parte de um ascenso do movimento feminista em toda a América Latina, que ficou bem marcado no ano de 2020, apesar da pandemia de Covid-19. O dia 8 de março foi cenário de uma das mais importantes mobilizações feministas na região. Só no Chile, dois milhões de mulheres foram às ruas nesse dia. As mulheres saíram às ruas no Brasil, Colômbia, Argentina, México, Equador, Peru. “A América Latina será toda feminista”, foi um grito que ecoou em todo o lado.

Também houve manifestações no Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, em 25 de novembro.

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Neste dossier:

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