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Afinal havia piscinas em Auschwitz?

Depois da extraordinária descoberta de que o nazismo tinha origem no marxismo, José Rodrigues dos Santos lança-se agora a uma nova descoberta. Afinal os campos de concentração, nomeadamente Auschwitz, não eram assim tão maus.

Depois da extraordinária descoberta de que o nazismo tinha origem no marxismo (descoberta que em que em quase 100 anos ninguém tinha feito), José Rodrigues dos Santos lança-se agora a uma nova descoberta extraordinária e revolucionária. Afinal os campos de concentração, nomeadamente Auschwitz, não eram assim tão maus e as câmaras de gás eram uma forma humanitária de matar judeus. Teriam até escolas e piscinas para os prisioneiros.

Entre estas duas ideias há um fio metodológico condutor. Primeiro José Rodrigues dos Santos cria uma ficção, depois constrói uma teoria histórica a partir dessa ficção. Nem Cristóvão Colombo lhe escapou, num dos seus romances reciclou a teoria (que nem um único documento fundamenta) de que teria nascido em Cuba, no Alentejo. Pode-se pensar que isso não é um grande problema, que é uma pessoa, que é megalómano, mitómano que tem uma imaginação delirante, ou apenas que está a explorar o sensacionalismo para vender.

Há aqui vários problemas, é uma pessoa que tem um papel destacado na televisão pública, o que lhe dá publicidade e credibilidade diárias. Essa mesma televisão conduziu uma longa entrevista de publicidade ao seu livro mais recente, o que, no mínimo, coloca questões deontológicas. Olhando para os tops de vendas esses livros vendem-se bem, mesmo num país em que se lê pouco.

A grande projeção pública de José Rodrigues dos Santos dá grande ressonância às suas ideias. Tal como na ideia de um Colombo nascido em Cuba do Alentejo, não há aqui originalidade nenhuma. As teorias negacionistas do Holocausto não são novas, têm sido largamente difundidas e discutidas ao longo das últimas décadas. Têm sido, aliás, vistas como parte de uma conspiração antissemita e do recompor da extrema-direita, e são alvo de uma quase universal rejeição. Essa rejeição é unânime nos meios académicos sérios.

Trata-se de negacionismo, não de revisionismo, porque, apesar de não negar o holocausto, pretende negar as condições em que foi feito, falseando as condições reais dos campos de concentração e atribuindo às câmaras de gás um fundo humanitário. Não se trata de revisionismo porque não há aqui, por muito que José Rodrigues dos Santos tente fazer crer, nenhum facto ou documento novo.

O negacionismo do Holocausto não é o único negacionismo. Ultra estalinistas fazem o mesmo em relação ao Goulag e lá vêm os livros de Losurdo à colação. Argumentos e teorias são basicamente as mesmas. Instalou-se igualmente o argumento do “então e”. Para desvalorizar o Holocausto responde-se: “Então e o Goulag?”. É preciso ser claro na ideia de que uns crimes não desculpam, nem desvalorizam outros.

Em Portugal tem-se assistido a um processo de negacionismo da escravatura, vão-se buscar estudos, aliás sérios, sobre a escravatura árabe, ou procurar falsidades e meias verdades para desvalorizar todo o processo de tráfico transatlântico de escravos. Alguns autores parecem ter-se especializado nisso. Pode-se pensar que isso é passado, que hoje não tem importância, mas, as tentativas de falsificação do passado só mostram que este tem importância política hoje.

Portugal é um país em que estas ideias têm um campo fértil de expansão. Afinal a participação de Portugal neste processo foi limitada. Portugal manteve-se neutro fazendo comércio com os dois lados. Os portugueses em campos de concentração foram poucos, não há grandes hipóteses de o leitor encontrar ali disparidade com o que lhe tinha sido contado pelo avô, como aconteceria em muitos países da Europa. Mesmo nos Estados Unidos seria possível ver a história pelos olhos dos soldados que se depararam com o horror desses campos em 1944 e 1945.

Diga-se que a participação mais notória de Portugal e de portugueses neste processo tem um sentido oposto, já que vai no sentido de tentar salvar judeus dos campos de concentração. Foi o que fez Aristides de Sousa Mendes e é, justamente, um “herói nacional” e não foi único no processo de salvar judeus do nazismo.

O conhecimento sobre os campos de concentração, os campos de extermínio e todo o processo do Holocausto é imenso. Passa pela literatura, pelas memórias, pelos estudos, ninguém da geração de José Rodrigues dos Santos deixou de ler o “Diário de Ann Frank”. Mesmo em Portugal, que foi marginal a este processo, há investigações recentes e publicadas de Irene Pimentel e literatura de João Pinto Coelho. Não pode haver desconhecimento da questão. Porém, parece que JRS falou com um sobrevivente que não lhe deu uma ideia tão negativa como isso e a partir daí construiu as suas “inéditas”, “corajosas” e “inovadoras” revelações que finalmente vão repor a verdade. Diga-se que “revelação” não é a palavra mais usada por historiadores.

Curiosamente não se encontram as justificações habituais dos negacionistas, que era tudo o produto de uma conspiração judaica, ou da propaganda aliada. JRS coloca-se como superior a estes meros interesses políticos de exploração do passado, tal como não aparece abertamente com um programa político para o presente. Tudo parece ter a função de alimentar o seu ego, a sua ideia de ser “o maior escritor português” e as suas vendas, afinal está “traduzido em 20 línguas” e vendeu “mais de 4 milhões de exemplares”.

Numa inversão de valores que vem sendo comum em Portugal, em que a crítica do racismo é acusada de ser ela própria racismo, a crítica do negacionismo acaba por ser apelidada de ignorância, inveja ou ataque à liberdade de expressão, até de “linchamento” do autor. É assim que Irene Pimentel que, de forma muito rigorosa, tem tentado desmontar esta ficção, tem sido atacada.

Estamos a falar do mal absoluto, dos acontecimentos mais trágicos e sangrentos da história da humanidade, qualquer tentativa de os normalizar, desculpabilizá-los, é de uma gravidade extrema, de tal forma que é criminalizado em alguns países. É também uma questão de decência humana básica.

Por cá, além dos tops de vendas, há uma presença diária na televisão pública, essa presença (lá vou ser acusado de tentativa de linchamento), devia terminar de imediato. Não creio que alguém que desculpabilize o holocausto possa estar a lidar com algo tão importante como as notícias. Uma pessoa que nega o conhecimento acumulado em décadas sobre um dos assuntos mais estudados e conhecidos, alguém que cria fantasias para substituir a verdade, não pode entrar diariamente nas casas das pessoas. Uma última nota, não dou dinheiro a ganhar a esta gente, há tanto e tão bom a ler sobre o assunto.

Sobre o/a autor(a)

Investigador de CIES/IUL
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