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O problema Boulos

O crescimento da candidatura de Boulos não foi só um incómodo à direita. Também a esquerda mais institucionalizada tem dificuldade em navegar no tsunami de democracia popular que atravessou as eleições de São Paulo.

São tão hegemónicas quanto erradas as conclusões apresentadas pelos média corporativos que apresentam Bolsonaro e PT como grandes derrotados das eleições municipais brasileiras de 2020. A condenação dos “extremos” para realce das soluções “moderadas” parece ser a aposta da direita tradicional neoliberal. Tentam simultaneamente desenvencilhar-se do estorvo económico e político chamado Bolsonaro (que promoveram para tirar o PT do poder) e eliminar qualquer reorganização da esquerda que se materialize em projeto político. Só há um problema. Um problema chamado Boulos.

1 – Vamos aos números

Como acontece em muitos países, seria abusivo fazer uma transposição direta da intenção de voto municipal para o plano nacional. É, no entanto, possível ver tendências e quem sai fortalecido ou enfraquecido das eleições. Mas num país com mais de cinco mil municípios, de grande complexidade e conflito social (ao qual não são alheios os 84 candidatos assassinados até ao dia da votação da primeira volta), é sempre prudente basear as tendências em números. A guerra de narrativas é intensa e revelam a disputa à direita pela melhor posição na largada para a corrida presidencial de 2022.

Como bem demonstrado por Breno Altman (ver aqui: https://youtu.be/_NcIR6EoxN4), do Opera Mundi, embora derrotados nas capitais e grandes cidades, quer PT quer os 5 partidos da base bolsonarista cresceram em votação absoluta, embora de forma e escala diferentes.

O PT estanca a acentuada perda de votos das últimas eleições, aumentando em pouco mais de duzentos mil votos a sua votação nacional; enquanto os partidos bolsonaristas foram de cerca de seis milhões e oitocentos mil votos para mais de treze milhões. Com uma votação que duplicou é difícil atribuir uma derrota a Bolsonaro.

Só os média politicamente ativos na defesa dos interesses da direita neoliberal tradicional podem retirar ilações diferentes.

2 – O Sistema versus Boulos

Com a maior parte da opinião pública ainda a carregar um forte estigma anti PT e uma outra maioria rejeitando Bolsonaro, a narrativa oficial vai-se consolidando. O Sistema vai antecipando possíveis quadros eleitorais para as presidenciais de 2022 cada vez mais à direita.

Cultiva-se a ideia da “Democracia ou Barbárie”, tentando cativar um eleitorado distraído mais à esquerda que, no receio da reeleição de Bolsonaro, pode optar por um voto “útil” num candidato liberal saído das fileiras democráticas, em melhores condições para derrotar o atual presidente. Esta ideia ganha capilaridade nos média, na direita e nalguma centro esquerda que se embala numa frente ampla anti Bolsonaro sem definir programa económico.

De manhã fará comunicados pela Democracia anti Bolsonaro, de tarde votará com o ministro da economia Paulo Guedes, aprovando no congresso nacional as atrocidades que vêm sendo aplicadas e propostas por este governo.

Não nos enganemos: Neoliberalismo também é barbárie: barbárie social e ambiental.

Existe, no entanto, uma candidatura que não se encaixa em nenhuma narrativa dos média. O discurso antipolítica e políticos passa ao lado de Boulos, que se afirma no panorama político brasileiro assente numa história de ativismo social. O discurso anticorrupção revela-se inaderente num candidato que, embora tenha origem de classe média, vive na periferia e conduz carro popular.

O Sistema que tenta balizar as próximas eleições presidenciais entre dois dos seus candidatos, o neoliberal tradicional e o neoliberal fascista, tem agora de digerir Boulos e sua forma de fazer política.

3 – Como cresce a esquerda

O crescimento da candidatura de Boulos consolidado nos mais de um milhão de votos na primeira volta da eleição do município de São Paulo, não foi só um incómodo à direita. Também a esquerda mais institucionalizada tem dificuldade em navegar no tsunami de democracia popular que atravessou as eleições de São Paulo. Alega que a votação do candidato do PSOL se deve à junção da esquerda (também sua) e à magnífica campanha digital que, pela primeira vez, teve na esquerda um candidato com maior influência nas redes e plataformas que o adversário. Embora factual, até esta última análise carece de aprofundamento e compreensão. Boulos conquistou as redes devido à envolvência da juventude na sua campanha. Foram jovens que produziram, partilharam e receberam a mensagem. Um tipo de engajamento só alcançado com agenda e proposta política feita por e para jovens, com suas preocupações no centro: educação, habitação, transportes, ambiente, sexualidade, identidade, racismo e participação na decisão política.

Boulos cresce essencialmente na lembrança do que é a esquerda, como, onde, com e para quem trabalha. Em torno de uma causa concreta, do que é essencial à vida humana e social. No seu caso foi ativista na defesa da habitação, trabalhou vinte anos com os excluídos da economia em busca de um teto. Conseguiu a atribuição de mais de vinte e três mil casas sem nunca ter ocupado cargo executivo ou de qualquer ordem na política institucional.

É na política concreta das causas populares que a esquerda pode crescer. No combate por direitos que estreitem a desigualdade. No trabalho paciente na base e consequente na política.

É também nos desafios do futuro que a juventude abraça que está o nosso renascimento como projeto de sociedade que ultrapasse o risco de extinção da sociedade e de quase toda vida no planeta.

Parabéns a Boulos, Erundina e suas equipas por nos refrescarem a memória.

Sobre o/a autor(a)

Diretor Executivo na área da publicidade (São Paulo - Brasil)
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