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Mil e uma noites sem Marielle

A criminalização da pobreza tem salvo conduto do Presidente Bolsonaro, um delinquente com ligações comprovadas às milícias, aos traficantes e aos corruptos, e é com esse mandado que cada PM (polícia militar) entra numa favela de fuzil na mão.

Esta semana completaram-se mil dias desde o assassinato de Marielle Franco. O mundo foi atingido por uma onda de choque com epicentro no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro ou melhor ainda – e aqui exige-se que sejamos rigorosos – nas comunidades pobres da metrópole carioca.

Vereadora eleita pelo PSOL, negra, lésbica, cria do complexo de favelas da Maré, Marielle exerceu o seu mandato numa luta desigual contra os podres poderes que dominam mais do que a política carioca, controlam também os recursos públicos e a sua distribuição, a polícia e os criminosos, a lei e o crime no Rio de Janeiro. No dia 14 de março de 2018 foi assassinada a tiro e imediatamente o mundo soube que o seu silenciamento teve motivações políticas.

Marielle foi vítima da política por outros meios. Esqueçam Clausewitz, não se trata de uma guerra “a sério” mas da generalização da violência legitimada por uma suposta “guerra às drogas”. Não é guerra, é uma degeneração da democracia numa cidade em que a conivência da polícia, dos políticos e dos gangues deu origem ao poder paralelo das milícias, grupos armados que servem interesses criminosos. No Rio, as milícias dominam mais território do que o narcotráfico assentado nas favelas.

Sob o manto legitimador da “guerra às drogas” foi adotado o fuzil como único instrumento para lidar com os flagelos sociais das grandes cidades brasileiras. A ordem do Governador do Rio de Janeiro foi clara: atirar primeiro, perguntar depois. Todos os moradores de favelas tornaram-se potenciais suspeitos e portanto potenciais vítimas da polícia militar que invade as comunidades quando quer.

A polícia foi responsável por um terço das mortes no Rio de Janeiro. Uma sociedade tem de estar muito desviada do Estado de Direito e do humanismo para não ver nisso um problema de segurança pública. Aquela está. Não por culpa própria, não recai sobre milhões de “favelados” outra suspeita que não a de serem pobres, culpados apenas da sua sobrevivência. A desigualdade social, brutal e bruta, é uma perversidade da elite do atraso1.

Esta semana a “guerra” fez mais duas vítimas. As primas Emily, de 4 anos, e Rebeca, de 7 anos, foram assassinadas numa comunidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, a tiros de fuzil. As meninas esperavam a avó no passeio de uma rua onde estava um carro da Polícia Militar. Os disparos que se seguiram atingiram Emily na cabeça e Rebeca na barriga. A polícia nega os disparos, a família pede justiça e provavelmente o caso será arquivado numa pilha de processos com a etiqueta “crianças mortas por balas perdidas”.

O que se passa no Brasil não é uma guerra, é violência de Estado. A criminalização da pobreza tem salvo conduto do Presidente Bolsonaro, um delinquente com ligações comprovadas às milícias, aos traficantes e aos corruptos, e é com esse mandado que cada PM (polícia militar) entra numa favela de fuzil na mão. Mas a violência não acaba aí, nunca acaba aí.

Este ano 90 políticos foram mortos violentamente, segundo a contagem do professor Pablo Nunes, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), do Rio de Janeiro. Na Amazônia costuma ser por conflitos de terras ou relacionados com a exploração ilegal de recursos. No Rio é frequentemente obra de grupos paramilitares, de milícias criadas por polícias que passaram para o lado do crime organizado.

A política por meios violentos é natural à extrema-direita, o ódio não é assintomático e tem de fazer doer em algum lado.

A naturalização da morte e da violência tem marca de classe, de género, de cor de pele. Ontem li no twitter da irmã de Marielle, Aniele, que na casa da família as madrugadas são o mais difícil. Os mil dias sem justiça para Marielle e Anderson são na verdade mil e uma noites, mil e uma noites de escuridão para a democracia brasileira.

Artigo publicado no jornal “I” a 10 de dezembro de 2020

Nota:

1 A Elite do Atraso: da Escravidão à Lava Jato, Jessé de Sousa, 2017

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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